quarta-feira, novembro 30, 2005

FERNANDO PESSOA



FERNANDO PESSOA
Invenção (in)gente
Lisboa, Portugal 1888-1935

ANTOLOGIA EM PESSOA
(nos 70 anos da sua morte)

ÁLVARO DE CAMPOS
Tabacaria



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

RICARDO REIS
Para ser grande, sê inteiro: nada



Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, 14-2-1933

ALBERTO CAEIRO
Num meio-dia de Primavera



Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

segunda-feira, novembro 28, 2005

PAULO LEMINSKI
'kamiquase'



um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

sexta-feira, novembro 18, 2005


Aki
Outono




もの置けばそこに生まれぬ秋の蔭  虚子

mono okeba soko ni umarenu aki no kage

Em qualquer lugar
Onde se deixem as coisas,
As sombras do outono.

Kyoshi





今朝秋や見入る鏡に親の顔  鬼城

kesa aki ya miiru kagami ni oya no kao

Ao mirar o espelho,
Na primeira manhã de outono,
O rosto do pai.

Kijô





この秋は何で年よる雲に鳥  芭蕉

kono aki wa nan de toshiyoru kumo ni tori

Neste outono,
Como estou ficando velho!
Pássaros nas nuvens.

Bashô





行秋の草にかくるゝ流れかな  白雄

yuku aki no kusa ni kakururu nagare kana

O pequeno córrego
Se esconde sob o capim —
O outono fenece.

Shirao





飯時や戸口に秋の入日影  樗良

meshidoki ya toguchi ni aki no irihi kage

Hora do almoço.
Pela porta, com os raios de sol,
As sombras do outono.

Chora





枯枝に烏の止まれけり秋の暮  芭蕉

kare-eda ni karasu no tomare keri aki no kure

Num galho seco,
Um corvo pousado.
Tarde de outono.

Bashô





此道や行く人なしに秋のくれ  芭蕉

kono michi ya yuku hito nashi ni aki no kure

Por este caminho,
Ninguém mais passa —
Tarde de outono.

Bashô





父母のことのみ思ふ秋の暮  蕪村

chichi haha no koto nomi omou aki no kure

Penso apenas
Em meu pai e minha mãe —
Tarde de outono.

Buson





名月や行つても行つてもよその空  千代女

meigetsu ya ittemo ittemo yoso no sora

Lua cheia!
Por mais que caminhe,
O céu é de outro lugar.

Chiyo-jo





名月を取つてくれろと泣く子かな  一茶

meigetsu wo totte kurero to naku ko kana

Lua cheia.
Me dá, me dá!
Chora a criança.

Issa





名月や池をめぐりて夜もすがら  芭蕉

meigetsu ya ike o megurite yo mo sugara

Ah, lua de outono —
Andando em volta do lago
Passei toda a noite.

Bashô





名月や座に美しき顔もなし  芭蕉

meigetsu ya za ni utsukushiki kao mo nashi

Ah, lua cheia!
Nem mesmo um rosto bonito
Entre os presentes...

Bashô





禪寺の門を出づれば星月夜  子規

zendera no mon o izureba hoshizukiyo

Ao deixar o portão
Do templo zen,
Uma noite estrelada!

Shiki





荒海や佐渡によこたふ天の川  芭蕉

araumi ya sado ni yokotau ama no gawa

Mar agitado —
Estende-se até a ilha de Sado
A Via-láctea.

Bashô





淋しさや花火のあとの星の飛ぶ  子規

sabishisa ya hanabi no ato no hoshi no tobu

Solidão.
Após a queima de fogos,
Uma estrela cadente.

Shiki





あかあかと日はつれなくも秋の風  芭蕉

aka aka to hi wa tsurenaku mo aki no kaze

Apesar do sol
Ardendo sem compaixão,
O vento de outono.

Bashô





淋しさに飯をくふ也秋の風  一茶

sabishisa ni meshi o kû nari aki no kaze

Em solidão,
Como minha comida —
Vento de outono.

Issa





馬の尾に佛性ありや秋の風  子規

uma no o ni busshô ari ya aki no kaze

No rabo do cavalo
Também há natureza búdica?
Vento de outono.

Shiki





稲妻にさとらぬ人の貴さよ  芭蕉

inazuma ni satoranu hito no tôtosa yo

Venerável
É quem não se ilumina
Ao ver o relâmpago!

Bashô





稲妻やきのふは東今日は西  其角

inazuma ya kinô wa higashi kyô wa nishi

Trovão —
Ontem a leste,
Hoje a oeste.

Kikaku





しらつゆに浄土まいりのけいこかな  一茶

shiratsuyu ni jôdo mairi no keiko kana

No orvalho branco
Encontrarás o caminho
da Terra Pura!

Issa





物の音ひとりたふるゝ案山子かな  凡兆

mono no oto hitori taururu kakashi kana

Algo faz barulho —
Cai sozinho, sem ajuda,
O espantalho.

Bonchô





案山子から案山子へ渡る雀哉  小波

kakashi kara kakashi e wataru suzume kana

De espantalho
Para espantalho,
Voam os pardais.

Sazanami





よの中は稲かる頃か草の庵  芭蕉

yo no naka wa ine karu koro ka kusa no io

Minha casa de sapê —
Será tempo de colheita
No mundo lá fora?

Bashô





我が聲の風になりけり菌狩  子規

waga koe no kaze ni nari keri kinokogari

Minha voz
Torna-se vento —
Coleta de cogumelos.

Shiki





七夕の歌書く人に寄り添ひぬ  虚子

tanabata no uta kaku hito ni yorisoinu

A moça rodeia
O poeta que escreve versos —
Festival das Estrelas.

Kyoshi





古犬や先に立つなり墓参り  一茶

furu-inu ya saki ni tatsu nari haka-mairi

O velho cão,
Na visita ao cemitério,
Segue à frente.

Issa





雁よ雁いくつのとしから旅をした  一茶



kari yo kari ikutsu no toshi kara tabi o shita

Oh gansos selvagens!
Desde que tempo
Tendes viajado?

Issa





木啄の柱をたたく住いかな  芭蕉

kitsutsuki no hashira o tataku sumai kana

Ah, esta casa —
Pica-paus vêm bicar
Sua madeira.

Bashô





蜻蛉やとりつきかねし草の上  芭蕉

tombô ya toritsuki kaneshi kusa no ue

A libélula,
Sem conseguir se agarrar
A uma folha de capim.

Bashô





行く水におのが影追ふ蜻蛉かな  千代女

yuku mizu ni ono ga kage ou tombo kana

Sobre o curso d'água,
Perseguindo sua sombra,
Desliza a libélula.

Chiyo-jo





我が影の壁にしむ夜やきりぎりす  蓼太

waga kage no kabe ni shimu yo ya kirigirisu

De noite minha sombra
Embebe-se na parede —
O grilo cricrila

Ryôta





庵の夜や棚さがしするきりぎりす  一茶

io no yo ya tana sagashi suru kirigirisu

Noite na cabana —
Um grilo na prateleira
Procura por algo.

Issa





むざんやな甲の下のきりぎりす  芭蕉

muzan ya na kabuto no shita no kirigirisu

Que tocante!
Debaixo da armadura
Sai um grilo.

Bashô





とんぼうや村なつかしき壁の色  蕪村

tombô ya mura natsukashiki kabe no iro

Libélulas!
Dá saudades da terra natal
A cor deste muro.

Buson





道のべの木槿は馬に喰われけり  芭蕉

michinobe no mukuge wa uma ni kuwarekeri

A flor
Da beira da estrada
Foi comida pelo cavalo.

Bashô





柿喰へば鐘が鳴るなり法隆寺  子規

kaki kueba kane ga naru nari hôryûji

Ao comer caqui
Ouve-se um sino tocar —
Templo Hôryûji.

Shiki





晩鐘や寺の熟柿の落つる音  子規

banshô ya tera no jukushi no otsuru oto

Sinos do anoitecer —
O barulho de um caqui maduro
Caindo no templo.

Shiki





山くれて紅葉の朱をうばひけり  蕪村

yama kurete momiji no ake o ubaikeri

O morro escurece
E das folhas do bordo
O escarlate rouba...

Buson





柳ちり菜屑流るゝ小川かな  子規

yanagi chiri nakuzu nagaruru ogawa kana

O salgueiro se desfolha.
Restos de verduras
Descendo o regato.

Shiki





朝顔の地を這ひわる空家哉  子規

asagao no chi o haiwataru akiya kana

As campânulas
Se espalham pelo terreno —
Casa abandonada.

Shiki

quinta-feira, novembro 17, 2005

CONSTANTIN CAVAFY

CONSTANTIN CAVAFY
1863/1933 Alexandria

Traduções
de
Jorge de Sena
( 90 E MAIS QUATRO POEMAS, Centelha/Fora do Texto, Coimbra, 1986)
e
de
José Paulo Paes
( POEMAS, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982 )
*
Imagens
GERHARD RICHTER

quarta-feira, novembro 16, 2005

CONSTANTIN CAVAFY
'PERGUNTAVA PELA QUALIDADE'



Do escritório em que lhe haviam dado emprego
insignificante e pobremente pago
( umas oito libras por mês, incluindo comissões)
saiu, quando a tarefa o curvara sobre a escrivaninha;
saiu eram sete horas, devagar vagueou
pelas ruas fora. Belo e atraente,
como que dele se exalava uma aura
de plenitude sensual completa.
Um mês antes, fizera vinte e nove.

Ia passando pelas ruas, pobres becos,
a caminho da casa em que morava.

Cruzara em frente a uma pequena loja,
destas que vendem tudo quanto há
de imitações baratas, coisas ordinárias,
quando lá viu um vulto, viu um rosto,
que o prenderam, e entrou, fingindo querer
saber de uns lenços de cores vivas.

Numa voz embargada perguntava pela qualidade
e o preço dos lenços, numa voz que o desejo
quase esvaía de tremor, extinta.
E as respostas vinham de igual tom, alheadas,
numa voz baixa e que se velava
de um consentir subentendido.

Continuaram sempre a falar dos lenços -
mas fito único era que as mãos se tocassem
nos lenços, e que as faces se aproximassem,
e os membros se roçassem como por acaso:
a momentânea graça do contacto físico.

Depressa e em segredo, para que o lojista
sentado lá no fundo, não se apercebesse.

[Trado. JS]

CONSTANTIN CAVAFY
'NO 25º ANO DE SUA VIDA'



Regularmente vai a essa taverna
onde, no mês passado, os dois se haviam conhecido.
Perguntou, mas não souberam dizer-lhe coisa alguma.
Pelas palavras deles, compreendeu que se tratava
de um desconhecido qualquer, um entre muitos
jovens desconhecidos e suspeitos
que por ali costumavam aparecer.
Vai à taverna, porém, regularmente, toda noite,
e, lá sentado, põe-se a olhar a porta;
vigia a entrada até ficar exausto.
Talvez chegue. Hoje quem sabe vem.

Durante três semanas faz o mesmo.
A sua mente enfermou-se de lascívia.
Os beijos na boca lhe ficaram.
Padece, toda a sua carne, de um desejo ardente.
Quer unir-se a ele uma vez mais.

Tenta, bem entendido, não trair-se.
Mas por vezes isso já quase nem lhe importa.
Aliás, bem sabendo ao que se expunha,
tomou a decisão. Não é nada improvável uma vida assim
levá-lo a um escândalo fatal.

[Trad. JPP]

CONSTANTIN CAVAFY
'UM JOVEM ARTISTA DA PALAVRA - 24 ANOS DE IDADE'



Trabalha agora como possas, cérebro. -
Um prazer incompleta o dilacera.
É enervante a sua condição.
Beija o rosto do amado todo dia,
suas mãos lhe acariciam os membros admiráveis.
Jamais na vida amou assim, com tal
paixão. Porém lhe falta a bela plenitude
do amor, a plenitude que há sempre de existir
entre dois amantes com desejos intensos.

(Não têm, os dois, igual pendor para os prazeres anómalos,
que só a um domina por inteiro).

E ele se irrita, e ele se atormenta.
Além do mais, está desempregado; e isso conta.
Umas pequenas somas de dinheiro
a duras penas consegue ( quase as tem
de mendigar, por vezes ) e vive pobremente.
Beija os lábios adorados; sobre
o corpo admirável - que, só agora entende,
apenas consente - se deleita.
E depois bebe e fuma, fuma e bebe,
e pelos cafés arrasta, o dia todo,
com tédio arrasta a dor da sua formosura. -
Trabalha agora como possas, cérebro.

[Trad. JPP]

CONSTANTIN CAVAFY
'UM JOVEM ESCRITOR AOS VINTE E QUATRO ANOS'



Trabalha agora como queiras, cérebro. -
Pois que o consome o prazer incompleto,
é enervante a situação em que este jovem vive.
Todos os dias beija o rosto amado,
as mãos perdidas nos incríveis membros.
Nunca antes desejara com tão grande
paixão. Mas o perfeito consumar-se
do amor lhe falta; falta o consumar-se
que só de um mútuo anseio intenso vem.

(Não se dão ambos igualmente ao prazer proibido;
apenas sem reservas o domina ele).

Assim se gasta em nervosismo extremo.
E está desempregado - o que também conta.
Pequenas somas de dinheiro pede
emprestadas com dificuldade (quase
às vezes as mendiga), e finge que se aguenta.
Os adorados lábios beija; e sobre
esse corpo magnífico - entendendo bem
como ele só consente - colhe o seu prazer.
E bebe e fuma, e bebe e fuma;
e arrasta os dias de café em café,
doridamente arrasta a languidez do vulto -
trabalha agora como queiras, cérebro.

[Trad. JS]

CONSTANTIN CAVAFY
'PARA AMON, QUE MORREU AOS 29 ANOS, EM 610'



Rafael, pedem que escrevas alguns versos.
Escreve-os, então, para epitáfio do poeta Amon.
Podes muito bem compô-lo. Algo polido, de bom-tom.
És o mais indicado. Escreve-os de tal modo
que quadrem ao poeta: Amon foi um dos nossos.

Dos seus poemas decerto hás de falar -
mas também da sua beleza singular,
a sua delicada beleza que amávamos.

Sempre belo e musical é o teu grego. Todavia,
faz-se mister tua inteira artesania desta vez.
Soe em língua estrangeira a nossa dor, o nosso amor.
Transfunde em língua estrangeira o teu sentimento egípcio.

Rafael, escreve os versos de tal modo
que eles tenham, sabes, de nossa vida um pouco,
que o ritmo, que cada frase, façam supor
que sobre alexandrino escreve um alexandrino.

[Trad. JPP]

CONSTANTIN CAVAFY
'PARA AMÓNIO QUE MORREU EM 610,
AOS VINTE E NOVE ANOS'



Pedem-te alguns versos, Rafael,
para epitáfio do poeta Amónio.
Escreve pois - tu sabes - com teu gosto e arte.
Tu és o indicado para escrever bem
de Amónio, o poeta, que um dos nossos foi.

Falarás, é claro, da obra dele. Mas
diz também da beleza que era a sua
beleza delicada que nós tanto amámos.

O teu grego é sempre puro e musical.
Agora, porém, toda a mestria é pouca.
Numa estrangeira língua a nossa dor e o nosso amor infundam.
Transpõe nosso sentir de egípcios para língua grega.

Escreverás, ó Rafael, teus versos,
de modo a que contenham, sabes, algo da nossa vida,
de maneira a que o ritmo, cada frase, afirmem:
um Alexandrino canta de outro Alexandrino.

[Trad. JS]

CONSTANTIN CAVAFY
'A CIDADE'



Dizes: "Eu vou para outras terras, eu vou para outro mar.
Hão de existir outras cidades melhores do que esta.
De todo o esforço feito - estava escrito - nada resta
e sepultado qual um morto eu tenho o coração.
Até quando vai minha alma ficar nesta inacção?
Onde quer que eu olhe, para onde quer que eu volte a vista,
a negra ruína de minha vida é o que se avista,
eu que anos a fio cuidei de a estragar e dissipar."

Não acharás novas terras, tampouco novo mar.
A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares
serão as mesmas. Os mesmos os bairros, os andares
das casas onde irão encanecer os teus cabelos.
A esta cidade sempre chegarás. Os teus anhelos
são vãos, de para outra encontrar um barco ou um caminho.
A vida, pois, que dissipaste aqui, neste cantinho
do mundo, no mundo inteiro é que a foste dissipar."

[Trad. JPP]

CONSTANTIN CAVAFY
'OS CAVALOS DE AQUILES'



Ao verem Pátroclo morrer tão jovem,
em todo o sei vigor e bravura sem par,
os cavalos de Aquiles puseram-se a chorar.
A imortal natureza deles se insurgia
contra o feito de morte a que assistia.
Sacudiam as cabeças, as longas crinas agitavam,
e, pisoteando o chão com os cascos, pranteavam
Pátroclo, a quem ali percebiam inerme, aniquilado -
cadáver ora desprezível - o espírito evolado -
indefeso - sem sopro de vivente -
exilado, da vida, no grande Nada novamente.

O pranto dos seus cavalos imortais
fez pena a Zeus. "No casamento de Peleu",
disse, "irreflectido foi o gesto meu;
inditosos cavalos, melhor fora, creio,
não vos ter dado. Que faríeis lá no meio
da mísera humanidade que é joguete da Sorte?
Vós, a quem a velhice não ronda nem espreita morte,
infortúnios fugazes padeceis. Às suas
dores os homens vos prendem". - Mas as lágrimas suas
pelo eterno, sem remissão jamais,
infortúnio da morte vertiam os dois nobres animais.

[Trad. JPP]