terça-feira, dezembro 27, 2005

Fernando Pessoa
Chuva Oblíqua

CHUVA OBLÍQUA
[8-3-1914]

I

ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

III

A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..

VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

domingo, dezembro 25, 2005

Feio e Modernidade em Portugal
Filipe Calheiros




O que vão ver/ler é do mundo "inútil", "supérfluo", (algo nefelibata), das Artes. É pura contemplação espiritual sem fim pragmático ou uso oportuno para além duma sublime contemplação edificante.

Se apreciam o canto "leviano" da cigarra divertindo e amenizando o duro labor "sem alma", cinzento, da formiga das fábulas, leiam o que se segue, pois é desse "nada que é tudo" que trata o presente texto.

É "sobre" a grande Arte que trata. Mais concretamente duma das suas disciplinas - a das artes plásticas dos tempos mais recentes -, nossa especialidade de investigação. É sobre Arte (dita) Moderna, a arte da nossa contemporaneidade, da "modernidade última", que iremos nomear (com alguma provocação teórica) com a categoria estética de "Feio", de Belo-feio, que iremos discorrer.

É que nas artes, nas mais diversas disciplinas, também nas artes plásticas, já foi o tempo em que se comprazia (e perseguia) o Belo antigo, a Beleza formosa, bonita, solar, luminosa, serena, harmónica - um Belo alegadamente intemporal, perene, imutável, estável (estático), absoluto e transcendente - o vetusto e (até há pouco) persistente Belo-bonito, canónico, clássico, convencional.

Esses valores estéticos, subsidiários e conformadores do Belo secular, tradicional, não sobreviveram ao dealbar do século XX, ao fim do paradigma autoritário e intolerante, dualista e conservador, censor e excluidor, do platonismo estético; ao declínio e termo fatal do classicismo estético que demorara a finar-se, triunfante e hegemónico que foi desde o quatrocento renascentista, a "nova Grécia clássica" do século XVI. Aqueles valores não sobreviveram ás rupturas violentas e intempestivas das vanguardas artísticas emergentes, apocalípticas, mas também, em última instância, à velocidade da técnica, à constante mudança nos modos, nos comportamentos, nas ideias, nos ideais, nas crenças, nas mentalidades; à permanente transformação operada na vida dos tempos modernos, e mesmo (e, sobretudo) à crueldade brutal da mais recente idade trágica que é o novecentismo. O "Feio" tornou-se uma realidade evidente, significativa (e omnipresente) no universo estético da modernidade, no peculiar discurso da contemporaneidade mais recente.

O processo estético traduz, agora, de maneira mais fiel o devir do homem e da sociedade, nas múltiplas e simultâneas mutações operadas, feitas em sucessivas rupturas, inovações, curto-circuitos, saltos, hiatos, desvios, mudanças, ... repentinas diferenças, intempestivos "outros", e, claro, sequelas, numa continuidade paradoxalmente descontínua, que sucede à continuidade linear da arte dos amigos.

"O Feio e a Modernidade" é então o título que encontrámos, mais explícito e objectivo, para nomear o tema substantivo desta conferência que aborda, a partir das perspectivas estética e histórica, a controversa realidade axiológica da Arte Contemporânea, e muito particularmente do seu panorama nas artes plásticas, dando a antever, sumariamente, a substância teórica da investigação de âmbito académico que temos em curso.

1ª pergunta óbvia ... fruto de (natural) estranhamento:

Porquê juntar aqueles dois vocábulos, e seus respectivos conceitos em um sintagma de identificação? Desdobrando:

O que tem a ver a categoria estética do "Feio" (entenda-se o feio-estético, o feio-artístico ou o Belo-feio, se se quiser) com a noção cultural de Modernidade?

Identificação estranha, insólita e até temerária, parecerá numa leitura apressada, mas também num cepticismo prudente.

Pois é da pertinência dessa identificação-diríamos ontológica-que trata o esforço teórico daquela investigação, apoiado que fica na evidência demonstrada do advento dos múltiplos, diversificados, simultâneos e constantes fenómenos emblemáticos da arte dos nossos dias, alargados ao nosso inteiro século, e conformando a emergência intempestiva dum paradigma estético novo, desconcertante, que inaugura o predomínio de uma nova categoria estética - o "Feio", precisamente!

É o "Feio" que comanda os discursos estéticos da modernidade, conformando a noção de idade contemporânea como um pathos singular, claramente antagónico à continuidade regular e (alegadamente) imutável do processo artístico secular, numa dinâmica afirmação de um devir feito de descontinuidades dinâmicas, dialécticas.

E o "Feio" é a realidade mais significativa das artes mais recentes, o conceito hegemónico da mais recente axiologia estética, patente tanto em leituras da aparência, como ao nível da essência.

O "Feio" em sentido subjectivo manifesta-se notoriamente na aversão genuína (que o atavismo nomeia também como ameaça), exteriorizada na reacção de "estranhamento" que provoca sempre, invariavelmente, o novo, na larga, atávica, conservadora e reaccionária - comunidade de fruidores leigos e recuados (convencionais e tradicionalistas ... neofóbicos!) da arte.

E a pejoração (o "feio" do novo, do desconhecido, do salto temerário no escuro, da procura arrojada do mais longínquo e inóspito, da vertigem do abismo...) sai mesmo das mentalidades (em princípio mais próximas das vanguardas) dos críticos (que deveriam ser) esclarecidos e despreconceituosos. Os "nomes de guerra", assumidos galharda e ironicamente, com picardia, pelos artistas vanguardistas, foram inicialmente um sinal inequívoco de choque e consequente rejeição: "impressionistas", "fauves" (feras), entanted kunst ("arte degenerada"), "arte do lixo" (a pop-arte), "arte estuporada" (a bad-paiting, "má pintura") e muitos outros, foram sempre os anátemas lançados para excluir, para nomear "fealdade", e depois, só muito depois, transformados em realidade tolerada, mais tarde ainda assimilada, e até consagrada.

É ainda, e sobretudo, o "Feio", que comanda o sentido objectivo de mudança da realidade essencial da arte dos nossos dias, da mutação estrutural, traduzida no ocaso das estéticas de obediência platónica, e dos seus imperativos obsoletos e decadentes; da decadência fatal das suas disciplina autoritária, censura excluidora, dualismo enganador. O "Feio" aparece como termo fatal da exaltação obrigatória e exclusiva da tradição e dos modelos do passado, como fim inevitável do escapismo idealista efabulador, ilusório e evasivo, esquecedor da realidade do Mundo e do Homem (e das suas circunstâncias), ao apregoar os enganadores arquétipos da transcendência.

Trata-se então do triunfo dum Belo paradoxal - o "Feio" estético, o Belo-feio, - situado nas antípodas do Belo secular, convencional, regular, o Belo-bonito, que se queria único e eterno...

Tudo isso ruiu fatalmente!

A nova categoria estética dominante é o "Feio" - esse Belo paradoxal, desdobrado nos valores predominantes dos discursos artísticos modernos: o patético, o trágico, o dramático, o prosaico, o sensual, o irónico, o mordaz, o sarcástico, o burlesco, o rude, o bizarro, o grotesto, o pícaro, o jocoso, o satírico, o paródico, o cómico, o lúdico, o exótico, o insólito, o fantástico... todos eles valores contrários do formoso, do gracioso, do sereno, do solene, do harmonioso... a que estávamos, há já longo tempo, habituados.

O "Feio" é a força anímica enérgica que move as vanguardas artísticas. É o dionisíaco perturbador, a expontânea exaltação dos instintos, a voz aberta das pulsões primeiras (primárias)... "do princípio do prazer", actuando na subversão do disciplinador "princípio da realidade"; do Eros triunfante (ainda que episodicamente) sobre a ameaça (derradeira) de Thanatos. O "Feio" é, sobretudo, a procura dum registo verdadeiro e fidedigno da crueldade do mundo real, na comunhão íntima e inseparável da arte com a vida. A vida exprime-se na arte por uma verdade fiel, ainda que transfigurada. A arte é o retrato, mentiroso da verdade, verdadeiro na sua mentira, da exaltação triunfante da Vida Livre. Do mosaico das suas múltiplas e contraditórias faces, tanto de júbilo como de desespero, tanto de entusiasmo (de encantamento) como de desilusão (de desencanto). Quer-se então a verdade na arte, e a verdade é cruel! Por isso aparece de modo assustadoramente cruel a arte moderna. Essa crueldade do "Feio" da arte moderna é talvez nomeável com mais propriedade como "Furor Poético" (Horácio) ou como "Sublime" (Schiller).

Procura-se o fiel e inteiro retrato e testemunho do homem no mundo, retrato e testemunho plurais e em devir. Os "tempos modernos" não permitem a imutabilidade dos modelos artísticos. A velocidade e a crueldade brutal da moderna idade trágica, que é o Século XX, não se compadece com os obsoletos modelos clássicos herdados do platonismo intemporal, e com a sua obediência longa. Estilos que duram séculos no passado, são substituídos, nos últimos tempos, por movimentos que duram uma década. "Feldades" que sucedem a outras "fealdades". Velozmente...

O Feio dominando múltiplas "aparições", diversificados fenómenos; retratos vivos dum real feito de sombras e de medos!

Como diziam os vanguardistas dos idos da 1ª Grande Guerra: "Como podemos querer uma arte e uma beleza serenas, se à nossa volta vemos apenas a mais crua fealdade, o lado mais negro dos homens?"

A fealdade é esse pathos peculiar nomeável como Modernidade Última. Um sentido moderno, que já não é datável pela idade homónima da histografia geral, mas que se conforma somente com os mais recentes tempos, com o século XX.

A modernidade é vista pelos historiadores da arte e pelos críticos da arte em dicotómico confronto com a antiguidade: os Modernos versus os Antigos (os artistas até ao século XX). O vocábulo modernidade (não confundir com moderno) é de autoria atribuída ao poeta Charles Baudelaire (1849) e nomeia o paradigma novo que emerge na Segunda metade do século XIX e se torna hegemónico no século XX.

A Modernidade Última identifica toda a criação artística e estética controversa, polémica e inovadora, posterior às grandes rupturas que acompanharam a mudança do século passado para este nosso inteiro século que agora acaba, A Modernidade Última identifica o mais recente estádio de desenvolvimento do processo da Arte - o de uma maturidade paradoxal - que se libertou definitivamente da tutela académica (platónica) que demorava em finar-se, e se rege agora por um paradigma estético "outro", em tudo contrário à noção vetusta de Belo e de Beleza - intemporais, perenes, imutáveis, totais, únicos, absolutos, transcendentes... e afastados do homem, considerado espectro grosseiro de Deus - que tais eram os atributos imperativos do platonismo estético.

É, agora, o triunfo do diverso, do novo, do estranho, do não-familiar. Fenómenos que se identificam com a "fealdade" artística como valor dominante. O Belo-feio comandando discursos estéticos, práticas artísticas. São as rupturas constantes no seio da cultura velha, é o assalto da "juventude do olhar" aos velhos templos da "Kultura", num ritual iconoclasta de uma beleza voluntarista e espectral.

É a geral laicização dos discursos estéticos, numa procura do real e do humano. É a fuga estética de Deus (suprema ficção,... agora esquecida!) na comum procura da estética do Homem. A arte deixando o sagrado, a arte perdendo o arrogante A grande. "Os antigos queriam mostrar o grandioso de maneira prosaica, os modernos querem mostrar o prosaico de maneira grandiosa".

E é a inversão total de todos os valores (como preconizou Nietzsche), praticada em múltiplos rituais de paixão e iconoclastia.

Avançam as vanguardas, exorcisando os fantasmas grotescos da nossa contemporaneidade, (mostrando-os com ênfase acentuado), na procura do homem, na sua redescoberta... tendo como horizonte identificador a realidade crua da sua condição, o absurdo da sua existência, mas também a relativa superação da sua finitude no horizonte exaltante da utopia! Uma vontade figurada de redenção!

O Homem é dissecado, aberto, reformulado, deformado, (in)compreendido, anulado (ainda)!, feito figura fantasmática na sua ausência nos discursos modernos, nos discursos das vanguardas (a ausência como sinal implícito da dor que provoca a presença). Cubismo e homem cúbico, multifacetado e policentrado; Futurismo e homem em movimento, em acção e velocidade, homem/máquina; Dadaísmo e homem absurdo, iconoclasta e nihilista; Surrealismo e homem por dentro, onírico e irracional; Expressionismo e homem trágico, desesperado e patético, espectro de si próprio... etc., etc. Sucessivas "lições de anatomia"... exemplares desconstruções simbólicas.

São emblemas maiores da fealdade da arte moderna, da arte da nossa idade contemporânea, a saber: as obras "A fonte" (um urinol assinado e datado R. Mutt, 1917) ou a Gioconda litografada com grafitti de bigode e a legenda LHOOQ que soletrado em francês dá "Elle à chau au cul" (ela tem o rabo quente), ambas do dadaísta Marcel Duchamp; ou as expressões do automatismo, da irracionalidade mais primária e do inconsciente onírico e libidinal das obras surrealistas de um Salvador Dali, de um Max Ernst ou de um René Magritte. Ou o expressionismo violento e deformador da Nova Objectividade, ou ainda a procura do regressivo da expressão plástica na estetização das marginalidades - a arte dos primitivos, dos marginais, dos loucos, das crianças, - feita pelos artistas do Movimento CoBrA, Karel Appel, Asger John, Pierre Alleschinsky, ou pelo movimento da Art Brut, pelo seu expoente Jean Dubuffet; o figurativismo de fealdade explícita e violenta dos pós guerra, de Francis Bacon, Lucian Freud ou Vladimir Velikovik; ainda o brutalismo matérico informalista, do Expressionismo Abstracto - Tapiés, Millarés, Saura, todos violentamente ibéricos, hispânicos.

É, ainda, a atitude "camp", de ironicamente revalorizar o mau gosto (o kitsch) dos artistas da Pop Art (Andy Warhol, Robert Rauchenberg, Jasper Johns, Claes Oldenbourg, Peter Philipps, Ronald B. Kitaj... Peter Blake ou Mel Ramos).

Ou mais recentemente a Bad-Painting, a Transvanguarda, revivalismo expressionista destruidor da ordem, da harmonia e da serenidade. ªR. Penck, Julian Schnabel, Keith Haring, George Baselitz, Anselm Keifer... ou Francesco Clemente, Mimmo Paladino, Sandro Chia, Enzo Cucchi, Robert Combas, Hervé Di Rosa... etc.

Sucessivos triunfos "apocalípticos".

Mas falou-se até aqui de arte ocidental, europeia (também de Portugal) mas enfatizando as vanguardas emergentes nos centros da arte e da cultura internacionais, e entre eles a grande capital do espírito, Paris, e esquecendo as particularidades regionais, nacionais (algo periféricas também).

É ainda sobre Portugal, é sobretudo sobre Portugal e sobre a Arte Portuguesa que vamos reflectir. É do ponto de vista da modernidade do século XX português que interessa partir. É do genius loci, do espírito do lugar, enquanto contexto cultural, que é preciso iniciar a nossa reflexão:

Como era Portugal cultural nos primórdios do século XX?

O quotidiano português do início do século, que é quando nascem as vanguardas, pode-se retratar, sem esforço, como um quadro geral claramente periférico, desenhando um ambiente cultural mesquinho e medíocre, atávico, sem horizontes, caldo cultural de forte cunho tradicionalista, a ruralidade mais forte que a urbanidade. E a conjuntura política? A liberdade republicana de 1910, teatralizada em intrigas áulicas, lisboetas, foi reduzida a episódico e caótico intermezzo de pequenos títeres políticos, sem força para liberalizar radicalmente mentalidades, e muito menos atitudes e gostos estéticos por todo o país, que continua apático, indiferente.

Num clima de marasmo e atavismo todo dominantes, com os naturalismos serôdios ainda persistentes, durante largos anos, nos gostos das elites sociais, irão aparecer, com o escândalo e a incompreensão geral, os primeiros modernismos (actualização estética que tardava), trazidos por jovens artistas portugueses que estagiaram em Paris -. Amadeo de Sousa-Cardoso, o maior de todos - a "1ª descoberta de Portugal na Europa do Século XX" como dele dizia o também modernista José d'Almada Negreiros. Amadeo e Almada, Eduardo Vianna, deslumbrados com os novos figurinos - cubistas, proto-abstractos, na esteira do Orfismo do casal Delaunay, Robert e Sónia, (residentes por algum tempo em Vila do Conde, no norte português), ou electrizados pelas comunicações panfletárias dos futuristas italianos, (Filippo Thomazo Marinetti, entre outros), divulgam manifestos revolucionários, proferem conferências visionárias, (herméticas, ininteligíveis), publicam poesias futurantes (poemas visuais, gráficos), utópicas, iconoclastas, e expõem, no meio da incompreensão, da pateada e do gáudio de burgueses ignorantes e boçais, um conjunto diverso de obras de grande frescura, inovadoras, inéditas, desconcertantes.

São eles os verdadeiros futuristas portugueses, cubistas também, não alheios ainda ao simbolismo, nem ao maneirismo art-nouveau, e conhecidos ficaram como os Primeiros Modernistas, agrupando, ainda, entre outros, Santa-Rita - Pintor, o humorista Emmerico Nunes, o pintor e ceramista Jorge Barradas, e ainda o maior poeta do século XX, Fernando Pessoa (e heterónimos), agrupados todos em torno da célebre revista "Orpheu".

Nota-se ainda a influência proto-cubista de Cézanne em autores como Almada, Dordio Gomes, Abel Manta e alguns mais.

Os modernos procuram, por esses idos, o equilíbrio possível entre as vanguardas europeias, e o gosto português dominante, que, como já vimos, estava recuado de décadas, fatalidade nossa,... endémica!

A escultura, mais ainda que a pintura, continua agarrada à estatuária passadista, embora alguns autores se esforcem por lhe dar um cunho modernizante - António Duarte, Salvador Barata-Feyo, Ernesto do Canto da Maia (... ou, mais tarde, Martins Correia, Lagoa Henriques, e Gustavo Bastos).

Os anos 30 encontram Portugal na aventura totalitária do Salazarismo, o auto-designado Estado Novo (velhíssimo), na esteira, aliás, dos movimentos autoritários de direita que grassam por toda a Europa. Em Portugal - uma "ditadura de brandos costumes". Fruta do tempo - o canto do cisne do paradigma político moderno -, um hiato na pós-modernidade que é o século XX.

Ora ditadura e arte nunca se deram bem! (... e também arte e democracia, paradoxalmente, ... ou talvez não!). Talvez uma República Aristocrática, como era a Veneza dos quattrocento e cinquecento. Como dizia Thomas Mann: "(...) A arte não tem nada a ver com a ditadura, pois tem tudo a ver com a liberdade e inquietação, atributos que a ditadura não permite; e não tem também a ver com a democracia, pois identifica-se com a elite, e não se compadece com a nivelação por baixo que é promovida pela democracia".

Mas, contrariamente ao que se poderá pensar, o salazarismo inicial, e sublinha-se inicial, não foi de todo prejudicial para o curso da arte moderna em Portugal. Isso se deve inteiramente à acção esclarecida de António Ferro à frente da Secretaria da Propaganda Nacional - uma espécie de Secretaria de Estado da Cultura - o depois designado SNI (Secretariado Nacional de Informação). É sob o seu impulso que se realizam as Exposições de Arte Moderna do SNI - onde se conciliam os formulários da modernidade da arte portuguesa com as balizas ideológicas que o regime autoritário vai permitindo, timidamente.

Realizam-se também os modernos Salões da S.N.B.ª e o 1º Salão dos Independentes, em Maio de 1930.

Os Anos 40 vêem a Grande Exposição do Mundo Português, em que numa enorme operação de propaganda do regime salazarista, se consegue o milagroso equilíbrio entre a arte oficial, académica e anacrónica (a designada arte estado-novista) e o(s) modernismo(s) envolvidos em variadas soluções de compromisso, balançando entre inovação e tradição.

Dominantes, ainda, em largos sectores do gosto, são os conservadorismos e os anacronismos, na sequência dos realismos académicos (obsoletos) da Europa (da Alemanha Nazi à Rússia Soviética). E teremos na estatuária académica os vultos retrógrados de Leopoldo de Almeida, Diogo de Macedo, Francisco Franco e Álvaro de Brée e na pintura académica os nomes de Eduardo Malta, Henrique Medina... ou Luis Aldemira-Varela...

É por esses idos, finais dos quarenta, que o regime autoritário português se irá afastar progressivamente da abertura à modernidade (António Ferro já falecido, por essa altura!)... o experimentalismo e a vanguarda serão cada vez mais incompreendidos e marginalizados. Mas expandem-se e multiplicam-se, apesar da repressão ideológica (e mesmo física, política - muitos serão presos!) os vultos da terceira geração modernista, balançando entre, por um lado, o expressionismo, e a variante mais aberta dos realismos alinhados - o Neo-Realismo - e, por outro lado, o Surrealismo Português e as primeiras manifestações pujantes e abertas do Abstraccionismo, de raiz parisiense. E são expressionistas maiores, a saber: Mário Eloy, Júlio Pomar, Mário Dionísio, Dominguez Alvarez, Júlio (dos Reis Pereira), Manuel Ribeiro de Pavia, Augusto Gomes, Rogério Ribeiro, Júlio Resende, etc., alguns marcando também a vida efémera do neo-realismo português.

E são surrealistas de monta: António Pedro, António DaCosta, Fernando Azevedo, Marcelino Vespeira, Moniz Pereira, Cândido Costa-Pinto, Artur do Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny de Vasconcelos, José-Augusto França, Alexandre O'Neill, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa entre outros, e na escultura Jorge Vieira. As polémicas estéticas começam por essa altura, o pós-guerra, finais dos anos 40 e anos 50, a girar em torno do dilema estético: figuração versus não figuração.

A Abstracção, via ensino da Escola de Paris, em duas vertentes, ora de pendor geométrico ora de carácter lírico e gestual, manifesta-se abertamente com vultos nacionais de muito prestígio: Maria Helena Vieira da Silva, expoente da "École de Paris", e cá, dentro de portas, Fernando Lanhas, Nadir Afonso ou o escultor Arlindo Rocha.

Dos anos 60 até hoje, a arte portuguesa actualiza-se, conseguindo a sua cabal identificação com os grandes formulários internacionais. Desenvolvem-se correntes expressionistas abstractas e gestuais, reaparecem neo-surrealismos, surgem tendências minimais e conceptuais, aparecem novas figurações na sequência da Pop-Art, surgem as "performances" e a instalações, e por fim os novos expressionismos (a bad painting e os "realismos feios" das últimas décadas).

São neo-surrealistas destes idos: Carlos Calvet, António Santiago Areal, Eduardo Nery, Eurico Gonçalves, Pedro Oom, António Quadros, Eduardo Luis... São artistas pop: António Palolo, Eduardo Nery, René Bertholo, Lourdes Castro, Eduardo Batarda Fernandes, ou António Charrua.

São expressionistas abstractos: João Vieira, Jorge Martins, Manuel Baptista...

Os anos 60 são o despertar para a "conquista portuguesa do Presente", e a descoberta dos ritmos mais recentes. Em Paris aparece o grupo português KWY. Ká Wamos Yndo, como traduziam com humor.

Não é, ainda, de esquecer a actividade, altamente meritória, incontornável, de divulgação da modernidade mais recente do mundo das artes, que promove a (inevitável) Fundação Gulbenkian, a partir de 1958, verdadeiro Ministério da Cultura (que em Portugal nunca houve verdadeiramente!), ou as famosas Exposições Gerais de Artes Plásticas (a partir de 1946) na S.N.B.ª, ou a acção pedagógica, tendencialmente mais moderna, das Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto, actualizada pelos meados do século, por altura da reforma do seu ensino, e com a abertura generalizada que proporcionou a democracia (o 25 de Abril de 1974).

As últimas décadas têm sido, pois, as da actualização premente. À luz dos novos discursos da arte internacional, os artistas portugueses não balançando cronicamente entre sentimentos de xenofilia e xenofobia, mas sempre batalhando para superar o quadro exíguo de cultura periférica que tem sido uma fatalidade portuguesa.

Destaquemos então a fealdade portuguesa do século XX: o Almada futurista, contestatário, polémico e escandaloso das conferências; o Amadeo de Souza Cardoso, embora de obra exígua pela morte prematura; os expresssionistas: Eloy, Pomar, Resende, Júlio; os surrealistas: António Pedro, Dacosta, Cruzeiro Seixas, Vespeira, Santiago Areal, Jorge Vieira, e ainda os percursos individuais de Júlio Pomar, Paula Rêgo, João Vieira, Bértholo, Martins, Batarda, ou ainda Carreiro e tutti quanti, que na década de 80 ressuscitaram expressões fidedignas duma "bela fealdade" contemporânea.

... E depois deste últimos idos, neste fim de século (e de milénio) qual o devir da Arte? a Portuguesa? A Europeia? A soi-dizant Ocidental? Qual o caminho para que a Arte aponta, num futuro "cada vez mais à porta" do presente?

A arte, ou confirma os diagnósticos descabelados de alguns (poucos) coveiros do simbólico, que profetizam o seu fim inadiável-a morte anunciada e a prazo-; ou, contrariando todas as previsões catastrofistas e escatológicas, segue na sua via constante de ser testemunho, identificação, religação, e símbolo maior da vida e dos homens, da sua circunstância, da sua condição. E do sentido trágico da sua existência.

Dito por outras palavras: ou estiola em discursos redundantes que redizem, sem alma, tudo o que já foi dito, ou, o que parece mais certo, se renova em discursos outros, de novíssimas formas e diversos e novos conteúdos!

... Mas não sejamos nós tentados também a profetizar...

Passemos antes às imagens, pois elas valem por mil palavras. Dizem!

Livro do Desassossego - extractos
Bernardo Soares




Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.

Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e impregna o mundo.

Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores - falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase do escolástico, tão justa em sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.

Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Compreendo que, atendendo a certos fatos aparentemente desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estupidezas que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.

Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito, nem o do relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lapsos ou sem-razões, não podem como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que se há em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que do rítmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o que nossa estreita razão considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico.

Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência. Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador. Ora, o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceite. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição.

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser.

É esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não o sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.
Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.

E a luz brota tão serenamente e perfeitamente nas cousas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.

Ah, como as cousas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície, que a luz toca, desta vida complexa de humana, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luz em tudo isto!

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuvas contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.

Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar n' ele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.

Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro.

Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade.

Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela.

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plano deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reincarnar, reincarnei sem mim, sem Ter eu reincarnado. Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.

Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.

O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gémeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente fruste.

Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo - contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independente de se lhe chamar varina, e de se saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas directamente, como florações da Realidade.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não Ihe posso tocar.

(...) Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés - maravilhas fluidas da imaginação.

(...) Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?

Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar.

Em todos os teus actos da vida real, desde o nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas. Torna-te para os outros uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio. E se alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não acredites também no que eu digo, porque não se deve acreditar em nada

sábado, dezembro 24, 2005

Fernando Pessoa
Livro do Desassossego




Carta a Mário de Sá-Carneiro

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a hora.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.

De que cor será sentir?

Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...

Você acha-me razão, não é verdade?

(em 14 de Marco de 1916)

Carta a João Gaspar Simões

(...) Estou comecando - lentamente, porque não é coisa que possa fazer-se com rapidez - a classificar e rever os meus papéis; isto com o fim de publicar, para fins do ano em que estamos, um ou dois livros. Serão provavelmente ambos em verso, pois não conto poder preparar qualquer outro tão depressa, entendendo-se preparar de modo a ficar como eu quero.

Primitivamente, era minha intencão comecar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassosego (Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o B. S. não é um heterónimo, mas uma personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordacão do Álvaro de Campos). Mais tarde, no outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa maneira inexpressiva.

Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso. (...)

(em 28 de Julho de 1932)

Carta a Adolfo Casais Monteiro

(...) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiracão, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberacão abstracta que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. O meu semi-heterónimo Bernardo Soares que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibicão; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilacão dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de "ténue" à minha, é iqual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. (...)

(em 13 de Janeiro de 1935)


Pessoa, Fernando, Livro do Desassossego por Bernardo Soares, recolha e
transcricão dos textos: Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha,
prefácio e organizacão: Jacinto Prado Coelho, Ática, Lisboa 1982,
pp. XLIII-XLVII