quarta-feira, novembro 07, 2007

Claridade e Rigor na Poesia de Eugénio de Andrade

MAIS de cinquenta anos passados sobre a revelação em livro, a poética de Eugénio de Andrade, na clara solaridade vocabular que em todos os seus poemas se patenteia com exuberância, tem reincidido nos últimos livros na mesma sinceridade e brevidade expressivas que fazem de toda a sua obra essa morada onde pairam sempre as sombras, passos e lugares que foram da infância e adolescência, de peregrinação e de vagabundagem por muitas outras paragens. Por isso, retomar o diálogo com o Poeta de Mar de Setembro, mesmo na insistência de uma concisão vocabular que o fazem mergulhar por vezes em certas imagens quase comuns ou de menor forma expressiva, de algum modo estabelecer o convívio com uma das vozes mais coerentes da poesia desta segunda metade do século XX português.
Na verdade, cada novo livro de Eugénio de Andrade, sendo ainda e sempre um mesmo e outro livro, prolonga ou retoma esse discurso cristalino e sincero, breve e incisivo, de saber guiar o leitor pelos lugares obscuros, 'branco no branco' (mesmo na aparente contradição expressiva e poética), que traz consigo essa tradição lírica portuguesa de Bernardin, Camões ou até dos primeiros trovadores medievais. Mas esse discurso, sendo idêntico e sempre diferente, ainda o mesmo tom e modo de o Poeta saber falar da vida e do mundo, dos pessoas e das coisas, dos olhares e dos sentimentos, nesse dizer por dizer ao rés das águas límpidas ou dos rios e lugares de diversa peregrinação, na persistente e decantada claridade poética:

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão
os dos campos de Alpedrinha
rega quatro ou cinco leiras de couves.

E, por essa repetida 'arte poética', Eugénio de Andrade, na brevidade e sinceridade do verbo, na emotiva e sempre renovada forma de abordar ou olhar o mundo, reencontra ou redescobre, mesmo num lódão perto da casa onde morara, num Porto que desde há muitos anos lhe pertence por direito de íntima coabitação, esse sentido solar da sua própria efemeridade, no fazer rente ao dizer e na carga simbólica e sentida das palavras com que todo esse seu 'verbo' poético se tece e enaltece:

Também a poesia é filha da necessidade
- esta que me chega um pouco já fora do tempo,
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca.

Por isso, na avalanche metafórica e expressiva de um propositado e claro rigor de expressão, uma poesia que arrebata e comove, destituída de sombras ou inibições, liberta de ironias ou de sarcasmos, mas, como declara Jorge de Sena, todavia'uma poesia aberta com generosidade a todos os anseios de libertação, sempre concebida num bom gosto que defendeu o poeta dos exageros do neo-realismo, do surrealismo ou do barroquismo hispânico', alcançando, no termo dessa sua pessoal experiência e aventura poética cumprida em largos anos, uma plenitude que faz a poesia de Eugénio de Andrade ser hoje verdadeiramente das mais lidas e admiradas por amplas camadas de leitores.
Talvez porque no rigor prosseguído no fio calmo dos anos, o que o Poeta de As Mãos e os Frutos deseja acima de tudo é que, pela simplicidade formal e pela transfiguração da sua expressão e clareza, essa solidariedade se confirme, de livro a livro, na cadência dos próprios versos, nessa inocência quase pagã sem deuses nem excessos, no cantante enaltecer do corpo, da terra e da vida, ou como já observara Eduardo Lourenço poder ainda dizer-se nenhum poeta como Eugénio de Andrade escreveu poesia de tal modo convincente com as figuras que lha sugerem e o obrigam a cantá-las, como se tudo estivesse certo no universo e só nós, no fundo, estivéssemos a mais'.
E assim, na intencional insistência dessa música vital que perpassa em cada poema de Eugénio de Andrade, saber-se que o rumor do mundo se constrói ainda e sempre de palavras, que nessa poética carregam todo o peso da memória, pelas sombras e lugares de um inalterável peregrinar, em trajecto que é único e singularíssimo na poesia portuguesa do nosso tempo, e ter sabido desde longe andar em boas companhias: Homero, Platão, Whitman ou Blake, Lorca, Machado, Montale ou Pessoa. E uma vez mais proclamar num dos poemas emblemáticos de Rente ao Dizer:

materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.

Serafim Ferreira

SOU FILHO DE CAMPONESES...

"Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio de amor vigilante e sem fadiga da minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz.

As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico - o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da alma.

Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro nas suas águas, talvez porque então o mundo não estava dividido, a luz, cindida, o bem e o mal compartimentados; e ainda uma repugnância por todos os dualismos, tão do gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo num coração de homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada"

terça-feira, novembro 06, 2007

HOMENAGEM A EUGÉNIO DE ANDRADE, MORTO.

Andityas Soares de Moura


Não conheci Eugénio de Andrade pessoalmente. A seu respeito só sei aquilo que toda a gente sabe, além de algumas fábulas e lendas adicionais que me foram confiadas pelo poeta Xosé Lois García, esse sim, amigo íntimo do falecido. Não conheci Eugénio e não gostaria de tê-lo conhecido. Sua cínica vaidade, associada a uma presunçosa ironia, o tornavam, para mim, uma pessoa, no mínimo, de convivência difícil. Não me sentiria à vontade em sua presença.

Mas isso, evidentemente, não é um problema. Na verdade, não gostaria de conhecer quase nenhum dos poetas que admiro. Quem conseguiria conversar com Dante qualquer coisa que não fosse, pelo menos, solene? E Rimbaud, será que alguém se habilitaria a dividir o quarto com o moço, sabendo que, entre outros hábitos, ele cultivava piolhos na própria cabeça? É possível imaginar mesa de bar mais tediosa do que uma à qual se sentassem Eliot, Pound e Rilke? Não conseguiria falar sobre assuntos triviais e humanos com Lorca, meu grande e querido Lorca, que só é assim porque o tenho, irreal, no coração.

Definitivamente, é preciso deixar os poetas em paz, cada qual com suas esquisitices, e, atividade que se torna cada vez mais rara no dias de hoje, ler as suas obras. A de Eugénio de Andrade vale a pena. Esse homem que agora morreu deixou-nos algumas das páginas mais límpidas da poesia portuguesa contemporânea. A leveza de seu estilo, a pureza de timbre e a arquitetura algo apolínea de seus versos são suficientes para diferenciá-lo e localizá-lo muito acima da maioria dos poetas portugueses vivos – e boa parte dos mortos, com exceção de um Pessoa ou de um Sá Carneiro. Quando nos aproximamos de seus poemas, somos invadidos por qualquer coisa de inefável e intraduzível. Suas palavras parecem escolhidas ao acaso. Todavia, compõem um todo harmônico habilmente projetado do qual quase não notamos as molas mestras, tão naturais que são: rigor e simplicidade.

Poeta do corpo e de suas paixões, Eugénio sabia manejar o verbo poético, conferindo-lhe uma realidade erótica crepuscular. Contudo, jamais permitia que sua dicção soasse banal ou, o que é pior, vulgar. Compreendia muito bem, com Wilde, que, assim como todo crime é vulgar, toda vulgaridade é criminosa. A nitidez de suas tintas líricas lembram os clássicos e ele, ao seu modo muito peculiar, foi um deles: árcade desgarrado no tempo e no espaço.

O amor na poesia de Eugénio nunca é alegre ou epifânico. O silêncio de gestos repetidos, de ternuras agônicas escorrem por suas páginas, molhadas do mais frio orvalho dos tempos: “Nada podeis contra o amor,/ Contra a cor da folhagem,/ contra a carícia da espuma,/ contra a luz, nada podeis./ Podeis dar-nos a morte,/ a mais vil, isso podeis/ – e é tão pouco!” (in Frente a frente). A ciência do amor, essa impura sabedoria, que só se aprende tarde, no limite – Drummond dixit –, foi, sem dúvida, o tema central da obra do poeta português, e isso contra todas as modas pós-modernas que insistem em não falar de coisas “ultrapassadas” como o amar. Mas não nos enganemos: o amor em Eugénio não é esfera de despreocupação ou de gratuidade lírica. Na poesia amorosa (erótica? pornográfica, algumas vezes?) de Eugênio não há trivialidades. Nela, se há inocência ou alegria, tal se dá apenas como gozo momentâneo ou explosão erótica. Na maioria das vezes, o amor é triste. Não há derramamentos pueris e ingênuos. Eugênio, como Mallarmé, leu todos os livros da carne: “Já gastámos as palavras./ Quando agora digo: meu amor,/ já não se passa absolutamente nada./ E no entanto, antes das palavras gastas,/ tenho a certeza/ de que todas as coisas estremeciam/ só de murmurar o teu nome/ no silêncio do meu coração” ( in Adeus).

As imagens de seus versos evocam uma espécie de paraíso perdido neopagão no qual a carnalidade do desejo se expõe sem mágoas, preconceitos ou ilusões. Nesse sentido, resgata, talvez sem querer, um lirismo autóctone muito português, entranhado, simples e claro. É com “As mãos e os frutos” (1948) que notamos a diferença e a força do seu radical erotismo, que não se compromete com correntes literárias, mas apenas com seus próprios impulsos e visões. Erotismo do corpo, mas também da palavra que o assediava. Somente a mais cortejada das camponesas portuguesas, a poesia, era capaz de fazer Eugénio sorrir de leve, como quem relembra uma antiga paixão juvenil: “Surdo, subterrâneo rio de palavras/ me corre lento pelo corpo todo;/ amor sem margens onde a lua rompe/ e nimba de luar o próprio lodo” (in Surdo, subterrâneo rio).

Dono de uma voz peculiar e fluida, José Fontinhas – era esse o verdadeiro nome do escritor, nascido aos 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia e morto no Porto, aos 82 anos de idade – misturava aos seus versos uma sonoridade lúdica – verdadeiramente lusa –, muitas vezes comparada a dos trovadores medievais. O recitativo de Eugénio nos lembra o andamento ambíguo, carregado e sensual do fado.

Falando em fados e ritmos, um das características mais notáveis da poesia de Eugénio de Andrade é a sua recusa consciente de cantar a alma portuguesa, de ser “natural” e acessível às classificações da crítica. Eugénio de Andrade canta como quem não canta. Os modelos canônicos do “poeta da terra”, do “poeta essencial” à moda de Caeiro, personae que tanto infestam a nova poesia portuguesa, não eram importantes para alguém que, como Eugénio, sabia que “as palavras estão gastas” (in Adeus). Por mais de uma vez o poeta se referiu com desdém aos chamados “temas tradicionais portugueses”. Dessa sua honestidade surgiram poemas belíssimos, naturais e gostosamente irônicos: “O meu país sabe as amoras bravas/ no verão./ Ninguém ignora que não é grande,/ nem inteligente, nem elegante o meu país,/ mas tem esta voz doce/ de quem acorda cedo para cantar nas silvas” (in As amoras).

Iniciei estas linhas dizendo que não gostaria de ter conhecido Eugénio de Andrade. E nisso não vai nenhuma repugnância. Sei que em seus últimos anos Eugénio queria ficar livre dos leitores e de todo o resto: das fofocas, dos boatos, das homenagens vazias etc. Talvez por isso tenha preferido se exilar no Porto, cidade céu escuro e tenso, de cinzas igrejas, onde até o rio parece ser de pedra. Ele chegou aquela espécie de estágio letárgico que o impedia de conviver com os seres humanos rasteiros. Isso porque, antes mesmo de morrer, já havia cumprido o seu destino. Virou vate: alma da poesia. Mesmo sem conhecê-lo, ó Eugénio, despeço-me com carinho. Que a eternidade te seja breve, como nos versos finais de teu poema: “Cai o silêncio nos ombros e a luz/ impura, até doer./ É urgente o amor, é urgente/ permanecer” (in É urgente o amor).


Belo Horizonte (Brasil), 20 de junho de 2005.

EUGÉNIO DE ANDRADE - Biografia

Vida do poeta


Eugénio de Andrade foi o pseudónimo de José Fontinhas poeta português do séc. XX, nascido na freguesia de Póvoa de Atalaia (Fundão) em 19 de Janeiro de 1923, fixando-se em Lisboa em 1932 com a mãe, que entretanto se separara do pai.

Estudou no Liceu Passos Manuel e na Escola Técnica Machado de Castro, tendo escrito os seus primeiros poemas em 1936, o primeiro dos quais, intitulado “Narciso”, publicou três anos mais tarde.

Em 1943 mudou-se para Coimbra, onde regressa depois de cumprido o serviço militar convivendo com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. Tornou-se funcionário público em 1947, exercendo durante 35 anos as funções de inspector administrativo do Ministério da Saúde. Uma transferência de serviço levá-lo-ia a instalar-se no Porto em 1950, numa casa que só deixou mais de quatro décadas depois, quando se mudou para o edifício da Fundação Eugénio de Andrade, na Foz do Douro.

A sua consagração já acontecera dois anos antes, em 1948, com a publicação de “As mãos e os frutos”, que mereceu os aplausos de críticos como Jorge de Sena ou Vitorino Nemésio. Entre as dezenas de obras que publicou encontram-se, na poesia, “Os amantes sem dinheiro” (1950), “As palavras interditas” (1951), “Escrita da Terra” (1974), “Matéria Solar” (1980), “Rente ao dizer” (1992), “Ofício da paciência” (1994), “O sal da língua” (1995) e “Os lugares do lume” (1998).

Em prosa, publicou “Os afluentes do silêncio” (1968), “Rosto precário” (1979) e “À sombra da memória” (1993), além das histórias infantis “História da égua branca” (1977) e “Aquela nuvem e as outras” (1986).

Durante os anos que se seguem até hoje, o poeta fez diversas viagens, foi convidado para participar em vários eventos e travou amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira, como Joel Serrão, Miguel Torga, Afonso Duarte, Carlos Oliveira, Eduardo Lourenço, Joaquim Namorado, Sophia de Mello Breyner Andresen, Teixeira de Pascoaes, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Mário Cesariny de Vasconcelos, José Luís Cano, Ángel Crespo, Luís Cernuda, Marguerite Yourcenar, Herberto Helder, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Óscar Lopes, e muitos outros…

Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”.

Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prémio D. Dinis (1988), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prémio Camões (2001). Em Setembro de 2003 a sua obra “Os sulcos da sede” foi distinguida com o prémio de poesia do Pen Clube. Viveu em Lisboa de 1932 a 1943. Fixou-se no Porto, a partir de 1950, como funcionário dos Serviços Médico-Sociais. Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto, após doença neurológica prolongada.

segunda-feira, novembro 05, 2007

EUGÉNIO DE ANDRADE - Antologia

Balança

No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.


Onde me levas, rio que cantei...

Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.
Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.
Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.
Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.


Num exemplar das Geórgicas

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.


O lugar da Casa

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.


Oiço falar

Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci á rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava á minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara e doiravam
o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria á minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.


O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Entre os teus lábios

Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Diz homem, diz criança, diz estrela.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

É na escura folhagem do sono

É na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.


Colhe

Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.


Ainda sabemos cantar...

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.


Nunca o verão se demorara

Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?


Devias estar aqui rente aos meus lábios

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum


De palavra em palavra

De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta
o êxtase do dia.


Foi para ti que criei as rosas.

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.

Húmido de beijos e de lágrimas,

Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)


Sê paciente; espera

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.


Hoje roubei todas as rosas dos jardins

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.


À breve, azul cantilena

À breve, azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem.
Vê como o verão

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.


Eram de longe...

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.


A raiz do linho...

A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.

Mas então cantava.

Quase Nada

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


Madrigal

Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.


As palavras

São como cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Rotina

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.


Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


A boca

A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?


Também o deserto vem

Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas


Green God

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.


Na varanda de Florbela

Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planicie, a lua,
e ao vento deste os olhos a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.


As Palavras Interditas

Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.



Adeus

Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.


Canção

Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.
Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.
Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.


Mar de Setembro

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves, só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.


Retrato Ardente

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.


Pequena elegia de setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


As mãos

Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.


Abril

Brinca a manhã feliz e descuidada,
como só a manhã pode brincar,
nas curvas longas desta estrada
onde os ciganos passsam a cantar.
Abril anda à solta nos pinhais
coroado de rosas e de cio,
e num salto brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul num assobio.
Surge uma criança de olhos vegetais,
carregados de espanto e de alegria,
e atira pedras às curvas mais distantes
- onde a voz dos ciganos se perdia.


Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinha como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrenbdo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos,
mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.


Nem sempre o corpo se parece...

Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro cante na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.


Essa mulher, a doce melancolia...

Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.

Deixa a mão...

Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.
Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com nácar da língua.
Só um grito desde o chão
pode fulminá-la.
A morte
não é um segredo
não é em nós um jardim de areia.
De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.
Vou ensinar-te como se reconhece
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.
A boca sobre a boca nevava.


Litania

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
O triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece:
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;
são a grande razão, a única razão.


Lettera amorosa

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Corpo Habitado

Corpo num horizonte de água,
corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos,
corpo defendido
pelo fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina,
corpo amorosamente humedecido
pelo sol dócil da língua.

Corpo com gosto a erva rasa
de secreto jardim,
corpo onde entro em casa,
corpo onde me deito
para sugar o silêncio,
ouvir
o rumor das espigas,
respirar
a doçura escuríssima das silvas.

Corpo de mil bocas,
e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito
irrompa das entranhas,
e suba às torres,
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.

Corpo para beber até ao fim -
meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação,
meu vento favorável,
minha vária, sempre incerta
navegação.