terça-feira, dezembro 13, 2016




O Livro

Cantares de José Afonso

Coordenação e textos de Manuel Simões e Rui Mendes

Notas de José Afonso

1ª e 2ª edições - Nova Realidade / 1966

*

Cantares, editado em 1966, foi / é o primeiro livro publicado em Portugal sobre José Afonso – o Poeta, o Músico e o Cantor de todos nós!
Do livro foram publicadas 4 edições. Duas na Nova Realidade (Tomar), em 1966, numa tiragem de 1.000 exemplares, cada. Os livros foram vendidos de mão em mão e, rapidamente, as edições esgotaram.
Pós 25 de Abril de 1974, foram publicadas duas reedições do livro na Fora do Texto (Coimbra), em 1994/1995, e o livro encontra-se também esgotado.

*CANÇÃO

O homem abriu a luz do dia e as suas mãos encheram-se de auroras e de fogo e o homem sentou-se à sombra azul dos seus filhos e, de voz embargada, começou a soletrar o incandescente Livro dos Vivos, pensando – era alta a manhã – que Abril já sonhava com as púrpuras mães do Maio de forquilha ao ombro, por esses campos fora – profundas mulheres, irmãs infinitas das ribeiras arteriais do sonho.

E o homem, erguendo-se na imanência do mundo, juntou a força da sua voz às escarpas dos ventos e das marés, alteando a ferocidade e o peso cantante das palavras, e os seus olhos, ó redonda e sobreviva esperança, eis que fundiam nos pórticos das trevas os tumultuosos gritos da folhagem de certa guitarra encarnada – constelação de barcos e de remos que despenhasse os céus.

(Raiava-de-púnico-sangue-o-mar-as-crinas-dos-cavalos-e-danados-os-cães-da-Europa-rugiam).

Rui Mendes



José Afonso

«NOTAS DE JOSÉ AFONSO»




Os Vampiros

Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair. Foi essa a intenção que orientou a génese de Vampiros, entidades destinadas ao desempenho duma função essencialmente laxante ao contrário do que poderá supor o ouvinte menos atento. A fauna hiper-nutrida de alguns parasitas do sangue alheio serviu de bode expiatório. Descarreguei a bílis e fiz uma canção para servir de pasto às aranhas e às moscas. Casualmente acabou-se-me o dinheiro e fiquei em Pombal com um amigo chamado Pité. A noite apanhou-nos desprevenidos e enregelados num pinhal que me lembrou o do rei e outros ambientes brr herdados do Velho Testamento.

EM TEMPO

Em Setembro de 1964, José Afonso, Zélia e os filhos mais novos, chegam a Moçambique e assentam arraiais no Alto Maé. Aí fixam residência, só regressando a Portugal em 1967.
Em meados de 1965, Manuel Simões e Rui Mendes estavam a coordenar os conteúdos para a edição do livro Cantares de José Afonso e, por tal motivo, decidiram escrever ao Zeca a dar-lhe conta do trabalho que tinham em mãos.
Em resposta, o Zeca enviou-lhes de Moçambique 43 Notas sobre a génese das suas Canções, para serem incluídas no Livro.
*
Acima se transcreve a «Nota» de José Afonso sobre «Os Vampiros».






Manuel Simões

Prefácio à 1ª edição de Cantares de José Afonso

À MANEIRA DE PRÓLOGO

Do Choupal até à Lapa / Coimbra não tem sossego – eis dois versos do lirismo tradicional coimbrão que sintetizam, sem querer, uma situação inquieta ou a circunstância de uma cidade cheia de acidentes, submetida a uma torre brumosa, com o seu quê de inatingível, torre que está na origem da cisão entre dois mundos urbanos: um, com os seus rituais estranhos, os ritos e os mitos conjugando-se para a alienação dos jovens por meio do exotismo das grandes e pequenas cerimónias; outro, marchando com o seu tempo, procurando integrar-se ao nível das conquistas da técnica (até ao ponto que a sociedade lho consente). Daí esta nítida separação, o ar medieval da "Alta" estabelecendo fronteiras com o mundo exterior e com o qual só comunica por ligações artificiais, abstractas, sem raízes.
Ora José Afonso, sofrendo o choque destes dois mundos, é absorvido primeiramente por uma escala de valores nitidamente tradicionais: uma "praxis" reverenciando um passado longínquo, um sonho para a adolescência que presta culto a actos que celebrizaram tal e tal aventureiros de uma boémia acentuadamente gratuita. É então que percorre o ciclo da "saudade", com o seu vocabulário próprio, a custo se movendo numa geografia de elementos míticos – o romântico Penedo, a Lapa feiticeira, o Choupal sonhador – elementos que entrarão na semântica da "saudade", não sem ressuscitar as "folhas" secas de seus antigos tributos prestados ao Romantismo.
De extremo a extremo, Coimbra não tem sossego. Não pelas razões diluídas no fado tradicional, mas por outras bem mais importantes que sobressaem numa realidade urbana, ao rés destas ruas insólitas, narcotizadas por secretos venenos, realidade que desafia as palavras e as remete ao seu "País de origem". E foi este desassossego, diariamente vivido, a pedra de toque para a consciencialização do jovem cantor de Fados, que era José Afonso: ausculta então a cidade para lhe conhecer o sangue; e o marcado rigor que circunscreve o polígono citadino, a hostilidade do clima, mas sobretudo a vitória nas eleições académicas de 1960, acabam por acentuar a progressiva tomada de consciência de quem, até então, tinha sido apenas o fútil representante de um lirismo deprimido e deprimente.
De facto, a partir de 1960, agrava-se o litígio entre duas formas de conceber o mundo, mesmo o pequeno universo encravado na cidadela. Foi um ano em que as pedras floriram e em que os poetas e cantores saudaram publicamente esse florescimento. Desenvolve-se um processo colectivo de actualização temática e musical das canções coimbrãs (perdendo o seu carácter subjectivo, vêm a enquadrar-se num processo geral de renovamento), na linha do qual se inscrevem os jovens dos Poemas Livres, Manuel Alegre com a sua Praça da Canção, acção em que se empenha toda a Academia então vitoriosa. A partir de agora, o estudante conhece o seu papel no devir histórico e a própria "Capa Negra" transforma-se num elemento de luta: Abre-te bem nos meus ombros / vira costas à saudade – cantará mais tarde Adriano Correia de Oliveira.

/

Redimindo-se da sua antiga expressão, os Cantares de José Afonso deixam de aclimatar-se no processo de sacralização do Fado de Coimbra. E, o que é mais importante, acabaram por se revelar adversos de tal processo, manifestando-se abertamente contra uma ideologia passadista, conservadora dos pés à cabeça, que tal é a ideologia sobre que assentam as antigas formas (hoje ainda com os seus servidores) e o decadentismo das suas proposições: um ambiente patriarcal, um bucolismo desbragado ou, ainda, um ruralismo sentimental – sempre uma evocação do passado em termos de passado.
Contra esta crise de consciência, apeia José Afonso alguns dos mitos vigentes. E o seu cantar torna-se então incisivo e mordaz, envolvendo a tão desamada geografia, que analisa agora em termos de rigor. A partir deste momento, a cidade está presente de outro modo, observada agora até frente às mais secretas armadilhas. Repare-se como nos fala das "meninas perdidas" do Lago do Breu, um poema que não dilucidará a complexa estrutura da prostituição, mas onde se acentua já uma preocupação de vulto frente às deformações sociais. E idêntico tema reconquista, mais recentemente, em Avenida de Angola, uma situação geográfica diferente mas utilizando processos semelhantes.
Parte importante dos seus Cantares é dedicada às crianças. Na sua vida docente, José Afonso tem contactado intimamente com os meninos "sem condição", com os meninos "do mal trajar" deste país de mar e sol. Correu com eles nos areais calcinados do Mondego, depois nas dunas algarvias, o suficiente para lhes conhecer as carências de toda a ordem. E se em Menino d'Oiro parece querer preservar o seu "menino" de toda a corrupção, levando-o um tanto idealisticamente no seu veleiro, em Menino do Bairro Negro pretende, pelo contrário, enfrentar a humilhação:

Tira os olhos do chão
Vem ver a luz


ou, com o seu grito de protesto, declarar ao mesmo tempo esta certeza:

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver


Mas o cantor apercebe outros horizontes e, com eles, renovados Cantares onde o poeta atinge, talvez, a melhor expressão do seu poder criador. Em Crónica de uma Vila, Cantar Alentejano, Ó Cavador do Alentejo e Grândola Vila Morena, são as terras transtaganas que estão presentes, com a gravidade dos seus problemas, alguns dos quais nos são apresentados em canções de experimentado vigor crítico, vigor que se manifesta na incomodidade destes cantares do Sul, uma lâmina dissecando o desamor do clima:

Ó cavador do Alentejo
Quem te viu e quem te vê
Há muito que te não vejo
Cantar sem saber porquê.


E o poeta conhece a situação, a circunstância geográfica, a evolução histórica:

Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar.

//

O tratamento do tema não é aspecto de menor importância nos Cantares de José Afonso. É evidente, todavia, que os poemas são expressamente feitos para serem musicados (com algumas excepções, claro), facto que os subordina a uma estrutura rítmica por vezes estranha, embora de belo efeito nas canções. E o que ressalta desde logo é a forma declaradamente popular que imprimiu aos poemas, retomando modelos tradicionais que implicam até a poesia trovadoresca. Esta matéria tradicional tem, contudo, um tratamento específico em José Afonso, particularmente pela feição popular que lhe deseja imprimir, daí resultando uma aproximação efectiva entre o Cantor e o Povo.
 Mas restarão dúvidas de que estamos em presença de verdadeiros Cantos Populares? É evidente que não se trata de cantos escritos pelo povo nem para o povo; mas trata-se de Cantares logo adoptados pelo povo, por estarem de acordo com a sua maneira de pensar e de sentir. Isto porque "o que distingue o canto popular no quadro de uma nação e da sua cultura… (é) o seu modo de conceber o mundo e a vida" ( António Gramsci – Literatura e Vida Nacional  ) .
De facto, ao ouvir-se José Afonso pela primeira vez, há uma pergunta que logo nos acode. – " Que voz é esta, tão nova e substantiva que, imediatamente, se nos torna familiar?" De tal modo se identifica com as nossas aspirações que nos parece tratar-se de uma voz que sempre nos acompanhou, connosco percorrendo este "areal onde não nasce o dia", agora amplificando e dando forma nova aos Cantos ouvidos nas duras tarefas do Povo.

Manuel Simões
1966




BIOGRAFIA e DISCOGRAFIA
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Afonso

CANTARES de JOSÉ AFONSO (Disco)
https://www.youtube.com/watch?v=IMLxwuTAxG8&feature=se


FICHA TÉCNICA
Conteúdos: Rui Mendes - rui-mendes@sapo.pt
Design Gráfico: Paulo Pratas - paulopratas@gmail.com

quarta-feira, agosto 01, 2012

MEMÓRIA DE JOSÉ AFONSO


JOSÉ AFONSO
83 ANOS
AVEIRO, 2 DE AGOSTO DE 1929 — SETÚBAL, 23 DE FEVEREIRO DE 1987




JOSÉ MÁRIO BRANCO,
SOBRE JOSÉ AFONSO


“Veio, de menino de oiro pela mão, acordar a madrugada. E fez mais, às vezes, uma só canção do que muita panfletada” .

Nos depoimentos que frequentemente são produzidos acerca do Zeca Afonso acaba sempre por haver uma tendência para destacar as riquezas, sem dúvida apaixonantes e essenciais, da sua imensa personalidade. Tal facto dever-se-á por certo à clara transparência da sua prática de vida e à naturalidade com que punha, no mais quotidiano gesto, todo o sentido dos valores que respirava – numa palavra, o exemplo que foi todo o seu percurso como cidadão, companheiro e artista.
Num país (e numa época) em que, por força da opressão, a criação – frágil e livre – se viu obrigada a alistar-se nos exércitos da utilidade social, é de esperar que se repare mais na luminosidade do exemplo do que na geniali­dade intrínseca da obra.
Mas José Afonso – a par de Ferré, Brel, Yupanqui, Dylan ou Chico Buarque – é um dos poucos autores/intérpretes que, no nosso século, provaram que a forma musical “canção popular” ultrapassa muito o estatuto de arte menor e atinge os mais altos níveis de qualidade estética poético-musical.
Diga-se, em abono da verdade, que o próprio Zeca Afonso nunca apreciou muito que se puxasse para este campo o debate sobre a sua obra. Sempre cuidando (e com que mestria!) os aspectos formais as suas canções, ele sobrelevava sistematicamente a sua po­tencial utilidade para as pequenas e grandes causas da Humanidade. Sentia-se mais à vontade na pele de testemunha activa do seu tempo do que na de um poeta prospector de eternidades. Certamente por saber, como sem­pre souberam os grandes, que os “aspectos formais” não são assim tão meramente formais, e que é sempre do solitário combate contra a matéria que acaba por nascer o sentido da obra criada.
O gesto criativo de José Afonso era, à primeira vista, espontâneo, simples, quase primitivo e orgânico. A balada coimbrã – matriz de origem, ela própria radicada no cancioneiro tradicio­nal beirão e açoriano – foi o veículo formal de um poderoso assumir das suas raízes poético-musicais. Anos mais tarde, a vivência africana provoca-lhe uma verdadeira explosão de formas melódicas, rítmicas e tímbricas, e – talvez mais que tudo – da função musical da palavra cantada.
O chão desta fonte de música era a sua profunda cultura humanística, as­similada e vivida. Praticar a liberda­de dá asas à criação, eis o que a vida e a obra do Zeca nos ensinam.
A obra de José Afonso, no seu todo, é um património fundamental da cultura portuguesa deste século. Fonte inesgotável de propostas, de caminhos possíveis, limiar de contacto directo com as sombras da nossa identidade de povo antigo e perdido. E, tal como a todo o nosso património, essa obra vive no perigo permanente de lhe acontecer o que vi, não há ainda mui­to tempo, numa praça de Lisboa: uma belíssima vivenda pombalina disfarça­da de loja de “hamburgers”.
Começam a abundar, por aí, deplorá­veis sinais de um aproveitamento bas­tardo e oportunista do seu génio.
Que não se cansem de nascer as fontes onde o Zeca foi beber.



CANÇÕES HISTÓRICAS






POEMAS ESCRITOS NA PRISÃO DE CAXIAS

PROSEMA I

Com a devida vénia me reparto junto do tampo de mármore meu secretário tão certo. Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra? Logrei substituí-la numa manhã óptima mas não esta em que  a mola salta reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise. Na confraria dos reclusos outras quimeras se aventam como Sol, Mãe, Amada, até que o tempo nosso inimigo se distancie e no abandone por instantes. A laje já sobre a qual o papel branco me obedece sem que o habitem outros sinais, pequeninos veios avolumem-se em áreas mais densas, configurando pássaros de porcelana chinesa. Afundo-me neste fundo para descobrir-lhes um sentido, branco, amarelo, de novo branco, cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se, perder-se, reagrupar-se.
De anacoreta nada tenho, só de multidões entre Cacilhas, Piedade e o Barreiro. E Campo de Ourique, que digo! A minha mão move-se, o pensamento pára, descubro as uvas pendentes como se fora Verão e o Sol ferisse como se olhara de frente. Nem um ruído de pássaros habituais junto à janela nos veio dar os bons dias, o funcionário impreterível virá à hora impreterível. Muito longe fora de portas um galo ou a sua ausência. Tenho uma toalha, um guarda-fato, uma cama. Apalpo os objectos, configuro-os às mãos acostumadas, sento-me. Lobrigo desejos; nas veias corre sangue sem mácula devolvido à força que o agita. Chamo a mim a reserva inesgotável de Alegrias, a raiva dos oprimidos, a bondade de um homem simples com quem, às portas de Arraiolos, me embebedara  num dia de sol e serra.

*

PROSEMA II

Para iludir a dúvida, privados de equipagens, nenhum dos habituais pontos de referência vem em meu auxílio. Procuro um ancoradouro distante, fora do estreito mundo em que me movo.  Inútil: bichos, objectos minúsculos, paredes brancas pontilhadas, o botão da campainha à minha esquerda. A memória retira-me a sua cobertura instantânea. Tento galgar esta padiola dentro da minha cabeça  e daí lançar-me à desfilada sobre uma estepe daninha ou cair do alto da montanha onde guardo o meu ninho de águias. Digo-vos que só pretendo A Grande Casa Alugada da Minha Infância, o vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara de que uma criança existia. O velho desapareceu inesperadamente num pequeno porto do Zaire e deixou-me só.

*

PROSEMA III

Querida Joana:


Como sabes eu estou preso mas também não sou um homem mau. Viste como foi. Não sejas rabugenta e ajuda o Pedro. Se ele estiver birrento lembra-se que ainda é um bebé e tu mais crescida que ele. O que eu não gosto é que sejas egoísta porque é muito feio. Se algumas das tuas amigas querem tudo para elas deixa lá. Elas fazem mal mas tu não. Explica-lhe que não devem ser egoístas. Tem cuidado com os sugos e outras porcarias iguais porque podes ficar sem dentes. Depois, mesmo que os queiras ter já ninguém te os pode pôr. Ficas como os velhinhos. Alguns deles tinham a mania de comer guloseimas, gelados e caramelos. E também chocolates.
Eu lembro-me muito de ti e do Pedro. O Zé ainda não cortou as barbas? Diz à Lena que eu não gosto que ela seja desarrumada. Todos têm que ajudar a mãe e a Dina.

Muitos beijos do
Zeca Pai
Caxias, 13-5-1973      









OUTRA VOZ

Outra voz outra garganta
Outra mão que se estende à que tombara
Uma fagulha num palheiro acesa
Ó meus irmãos a luta já não pára

*

CALAI O CANTOCHÃO

Calai o cantochão
Diz o amigo sapo
Fato de ser trapo
E em toda a parte se ouvia
Um coaxar que afligia
Mas então
Para matar a peçonha
Há que perder a vergonha
E à noite
Pela lua cheia
Chora a galinha do mato
Farte de ser freira

*

INVENTÁRIO

Teu bico rosa
Faz negaças à prosa
pata branca bico aberto
Saltitando recto
e eu dentro
quadriculado
com os olhos ao lado
Um púcaro faz inveja
Á sede que se deseja
Mas há mais
há uma mesa
e a sobremesa
de branco

Ó casas ó pálidas fortunas
Abertas todos os dias
às ruas
à vida frouxa que anseia
fala estrebucha baqueia

Quem se viu terra dormida
Flor cortada?
A que mais goza
É a rosa








 


HÁ UMA LUZ PURA CIMEIRA

Á uma luz pura cimeira
Neste invólucro ao meio dia
Avessa a qualquer guarida
Uma centopeia
Na estreiteza da sala
Trepa às paredes do dia
Digamos vento granizo
Algum sinal de verdade
Que venha portas adentro
Despertar esta vaidade
Mas sempre na manhã fresca
Só o silencio acordava
Só um murmúrio sentia
Há um luz pura cimeira
Neste invólucro ao meio dia

*

DESTA CANÇÃO QUE APETEÇO

Desta canção que apeteço
À espera do Maio ido
Chega-me agora um trinado
Do outro lado do rio

Quisera ser rio ou ave
Cair no chão que estremeço
Para cantar à vontade
Esta canção que apeteço

Esta canção a meu gosto
Vinda pela madrugada
Sai da garganta da gente
Aos magotes pela estrada

*

A FALINHA MANSA

A falinha mansa
Do homem do olho pardo
É um subúrbio de valsa
Nada indica de que lado
Sopra o vento ou o contrário
Digo: bom dia leopardo!
Torno-me bom camiseiro
Mas a pupila do homem
É melhor que um faroleiro

Um minuto por engano
Porta vestida de pano

*

A MÃO ENTRE O CREPITAR

A mão entre o crepitar
De prata em forma de cunha
Fez o formato da cara
Mas não são bolas de pão
São pedacinhos de queijo
Que as ratas buscam e cheiram
Na minha imaginação
Não lhes peçam mais casulos
Com esse olhar de cereja
Sejamos bichos avaros
Deitemos fora o cotão
Dos pedacinhos de queijo
Nascem bolas de sabão


*

A  MEIRIM

À sombra do que está
Há quem incline a cabeça
Há quem na vertical
Diga que sim não está mal
Minha tia era
Dessa razão
Dizia humilde contrita
Não subas
Ao parapeito de Judas
E o vendilhão era recto
Não pretendia ser mais
Que um funcionário correcto
Pois na Instrução
O César tinha razão
Só não tinha a tia dele
Verdade diga-se
E sede
Da pura apocalíptica
Depois quem lhe fez a cama
Foi um menino de mama

*

Estão livre de perigo os homens ocupados
Fora de tromboses e astenias
Assente nas ombreiras
Dos homens da rua
A cidade flutua
Mas há quem padeça ao vivo
De azia papéis selados
Bilhetes de lotaria
Bombons de todos os dias
Estão livres de perigo os homens fáceis
De gestos livres conta-corrente chuveiro
Gambrinos se houver dinheiro
Ó Portugal do meu lado
Para onde vais embarcado?


*

UM VELHO SOLUÇO

Um velho soluço
Traz-me o teu anexo
Priva-me dos braços
Quebra-me a infância
Livra-me do medo
Como as tartarugas
Quebra este silêncio
Anda alpergatas
E no entanto treme
Vive dos tentáculos
Digere peixinhos
Enche as algibeiras
E no entanto dorme
Namora as formigas
Foge como se
Soubera que o vento
Não pára fustiga
Não geme madraça
Ansiando por
Caminhos do mato

*

A DRUMMOND DE ANDRADE
(com a devida vénia)


Velho Drummond se te tivera
Junto de mim a esta hora
Em que o silêncio é uma ordem
E a solidão longa espera
Tu me prestaras teu verbo
Ou a tua mão estendida
Cheia dessa humanidade
Que alguma vez pressentira
Se alguma vez a entendera
Como agora

Lembrar-te Drummond amigo
Num território macabro
É como levares contigo
Um filho desnaturado



In:
José Afonso
Textos e Canções
Organização e Notas
J.H.Santos Barros
Assírio E Alvim
Abril de 1983




LINKS

25 ANOS COM ZECA AFONSO
http://www.viriatoteles.net/pt/actual/jornal2012/25-anos-com-zeca

E 25 ANOS SEM JOSÉ "ZECA" AFONSO
http://crebas.blogaliza.org/2012/02/24/e-25-anos-sen-jose-zeca-afonso/

Helena Langrouva
JOSÉ AFONSO E A POESIA POPULAR
PORTUGUESA CANTADA

BREVE SÍNTESE TEMÁTICA
De 1964 a 1977
http://triplov.com/helena/Zeca-Afonso/Poesia-popular/canto-popular.htm


EDUARDO M. RAPOSO
O canto e o cante, a alma do povo
http://cantoresintervencao.com.sapo.pt/ERAPOSO_OcantoeoCante.pdf



ASSOCIAÇÃO JOSÉ AFONSO
http://www.aja.pt/


Realização: Rui Mendes
Edição: Alexandre Relvão


quarta-feira, fevereiro 01, 2012

HERBERTO HELDER
Havia um homem que corria pelo orvalho dentro …



NOTA
Poema dito pelo próprio num disco Vinyl, editado pela Philips para a série Poesia Portuguesa. A remoção dos "cliques" do vinyl diminuiu a qualidade da voz. Alinhamento musical: Gustavo Santaolalla - Thomas Newman.



*

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.


Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.


Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar


- a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece


- como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam estas coisa puras.
Renascia.



HERBERTO HELDER
(do livro «A Faca Não Corta O Fogo – súmula & inédita» - Assírio & Alvim, 2008)



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BIOGRAFIA



Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira (Funchal, São Pedro, 23 de Novembro de 1930) é um poeta português de ascendência judaica.[1]
Filho de Romano Carlos de Oliveira (Funchal, Monte, baptizado a 26 de Novembro de 1895) e de Maria Ester dos Anjos Luís Bernardes (c. 1900-1938), tem duas irmãs Maria Regina e Maria Elora. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista,bibliotecáriotradutor e apresentador de programas de rádio. Viajou por diversos países da Europa realizando trabalhos corriqueiros, sem nenhuma relação com a literatura e foi redactor da revista Notícia em Luanda, Angola, em 1971, onde sofreu um acidente grave.
É considerado um dos mais originais poetas vivos de língua portuguesa. É uma figura misantropa, e em torno de si paira uma atmosfera algo misteriosa uma vez que recusa prémios e se nega a dar entrevistas. Em 1994 foi o vencedor do Prémio Pessoa que recusou.
Casou duas vezes, com Maria Ludovina Dourado Pimentel, de quem tem uma filha Gisela Ester Pimentel de Oliveira, por casamento Lopes da Conceição, e com Olga da Conceição Ferreira Lima. De Isabel Figueiredo é pai do jornalista Daniel Oliveira.
A sua escrita começou por se situar no âmbito de um surrealismo tardio. Escreveu "Os Passos em Volta", um livro que através de vários contos, sugere as viagens deambulatórias de uma personagem por entre cidades e quotidianos, colocando ao mesmo tempo incertezas acerca da identidade própria de cada ser humano (ficção); "Photomaton e Vox", é uma colectânea de ensaios e textos e também de vários poemas. "Poesia Toda" é o título de uma antologia pessoal dos seus livros de poesia que tem sido depurada ao longo dos anos. Na edição de 2004 foram retiradas da recolha suas traduções. Alguns dos seus livros desapareceram das mais recentes edições da Poesia Toda, rebatizada Ofício Cantante, nomeadamente Vocação Animal e Cobra.
A crítica literária aproxima sua linguagem poética do universo da Alquimia, da mística, da Mitologia edipiana e da Imago da Mãe.





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LIVROS
http://www.librarything.com/author/helderherberto/names




Realização: Rui Mendes Edição: Alexandre Relvão