sábado, junho 16, 2007

Pedro Calapez

ANTÓNIO RAMOS ROSA / Obra ao Verde / Maria Estela Guedes

Antonio Ramos Rosa: obra ao verde

Maria Estela Guedes
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1. Os leitores face à obra

Nascido em Faro, em 1924, António Ramos Rosa é um dos mais acarinhados poetas portugueses contemporâneos, e com toda a justiça. Faz parte de uma constelação de grandes visionários da palavra que nos têm dado a nós, portugueses, e também a povos de outras línguas, alguns dos mais importantes exemplos da excelência e beleza da nossa lírica - Natália Correia, Mário Cesariny de Vasconcelos, Eugénio de Andrade, Herberto Helder, para citar alguns.

Foi em Faro que António Ramos Rosa publicou o primeiro livro de poemas, “O grito claro”, em 1958. Aí foram editadas as revistas Árvore (1951-53), Cassiopeia (1955) e Cadernos do Meio-Dia (1958), que dirigiu, até as publicações terem sido interrompidas pela censura. Nessa fase importante, criou amizade e companheirismo com outro grande poeta, Casimiro de Brito, que ainda dura. É importante esta fase inicial porque António Ramos Rosa, com as revistas, estava a criar dispositivos de autonomia literária e independência do sistema. Uma revista que nos pertence é diferente daquela de cuja direcção e aceitação do nosso trabalho estamos dependentes. As revistas não duraram muito tempo, mas o facto de a censura ter aparecido em cena prova que a independência de espírito dos autores dava os seus frutos e que a sua presença se fazia sentir de várias maneiras, e não apenas no espaço literário.

A obra de António Ramos Rosa é muito vasta e variada, dentro e fora da literatura e do país. Dentro e fora da literatura, porque também se dedica às artes visuais, não só como ilustrador, mas expondo em galerias de arte. Dentro e fora de Portugal, porque está traduzido em vários países, sobretudo de língua francesa e castelhana.

Uma consulta rápida na Biblioteca Nacional permite verificar que António Ramos Rosa figura como autor em mais de duas centenas de títulos, e como título numas dezenas de registos de livro. Além de serem já muitos os volumes de poesia publicados, vários são duplos, como o mais recente, “Génese”, que inaugura uma nova colecção de poesia, dirigida por Casimiro de Brito (1). Realmente são dois livros num único registo: “Génese seguido de Constelações”, número um da colecção Sopro, na Roma Editora. Já não é viável aproveitar ocasiões como esta, em que homenageamos o autor, para apresentar um estudo que contemple ao menos parte significativa dos seus livros, porque são muitos.

Quanto a registos com o nome de António Ramos Rosa em título, trata-se naturalmente de livros sobre a sua obra: teses de mestrado, antologias, retratos de jornalistas e ensaios literários. Entre os ensaios, saliento “António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo”, de João Rui de Sousa (2), e “Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa”, de Ana Paula Coutinho Mendes (3). Esta autora também assina a “Antologia portátil de António Ramos Rosa”, que abrange textos desde o primeiro livro, “O grito claro”, de 1958, até “Choque e pavor”, de 2003 (4). Já que falo de antologias, é preciso lembrar Casimiro de Brito, íntimo leitor do poeta, seu amigo de muitos anos, que assinou um livro de ensaios poéticos sobre a sua obra, “Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia (5).

O reconhecimento dos leitores pela obra do poeta manifesta-se, além das entrevistas e do muito ensaísmo sobre os seus livros, dado à estampa em jornais e revistas, e agora também na Internet, nos mais importantes prémios que em Portugal se atribuem aos intelectuais. Entre outros, António Ramos Rosa já recebeu o Prémio Pessoa, o do Pen Clube, e o Grande Prémio de Poesia. O Grande Prémio de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, foi-lhe atribuído em 1988 ou em 1989, pertencia eu então aos corpos directivos. Fiz parte do júri que o elegeu. E como o discurso se tornou agora tão pessoal, informo a audiência, e em especial António Ramos Rosa, que entre os sítios no ciberespaço onde se editam poemas seus e ensaios sobre a sua obra, se conta o TriploV (http://triplov.com), que dirijo. António Ramos Rosa tem a sua webpage no TriploV, construída com a colaboração dos poetas Rui Mendes e António Cardoso Pinto.

Homenagens também já várias foram prestadas a António Ramos Rosa, esta que hoje lhe fazemos na II Bienal de Poesia não é a primeira nem será a última. Como estamos no Algarve, recordo a que lhe fez Faro, sua terra natal, em 1999, com um festival de poesia de que resultou a obra colectiva “Encontros de Outono”(6).

Passemos agora ao que tem motivado o reconhecimento do público, a obra de António Ramos Rosa. Entre os cerca de duzentos títulos em que o seu nome figura como autor, a maior parte são os livros de poesia. Mas o poeta é também tradutor, ensaísta, crítico de literatura e de artes visuais, por isso recordo os seus ensaios: “A Poesia moderna e a interrogação do real” (7), “Poesia, liberdade livre” (8), “Incisões oblíquas” (9) e “A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas” (10).

Para terminar esta nota introdutória, refiram-se as muitas traduções que desde sempre Ramos Rosa tem assinado, invariavelmente de autores muito marcantes da literatura mundial: Paul Éluard, Marguerite Yourcenar, Michel Foucault, André Gide, Brecht, Teilhard de Chardin, Albert Camus e tantos outros.



2. Liberdade de ser

António Ramos Rosa, como outros poetas que começaram a publicar antes do 25 de Abril, manifesta na sua poesia linhas temáticas que, apesar do regime de censura, são politicamente muito claras. Esses temas dizem respeito, como não podia deixar de ser, e tendo ele a experiência da tesoura, à falta de liberdade, e por isso à prisão da vida mesquinha de todos os funcionários cansados, sob a ditadura de Salazar. É ao desejo de liberdade que se aspira quando nos poemas aparecem gaiolas, prisões e pássaros, como acontece precisamente no conhecido Poema dum funcionário cansado, que remata com “palavras soterradas na prisão” da vida (11). Essa reclamação aparece com grande veemência no redundante título da colectânea de ensaios, “Poesia, liberdade livre”.

Parece que no meio das muitas correspondências poéticas, a poesia é o mesmo que liberdade. Mas se a liberdade da poesia é uma liberdade livre, quer dizer que fora dela o não é. Admitindo-se assim que há uma liberdade que não é livre, verificamos que entre os termos “liberdade” e “livre” não existe total correspondência. Ou então só existe na poesia.

A falta de liberdade não se limita à prisão do corpo, e por isso o poeta não a perde como linha de força em mudanças de regime político, nem nos confins dos primeiros poemas. É um tema permanente, ontológico, ele atravessa toda a obra, unindo linguagem e ser numa só natureza ou estado de correspondência. Declara António Ramos Rosa, numa entrevista: “A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre.” (12).

A liberdade que o poeta reclama para a palavra ultrapassa a liberdade de expressão, porque o ser e a palavra não se distinguem na sua perspectiva ontológica: o poeta escreve sol (13) da mesma maneira que as árvores falam, isto é, o poeta cria mundo com as palavras. Dos diversos mundos ou diversas categorias de realidade, entre elas a criada pela linguagem, ocupou-se Karl Popper. Há de facto uma dimensão cognitiva na poesia de António Ramos Rosa, que decorre da perspectiva filosófica com que vê a comunicação, e não só humana, pois também admite os códigos da Natureza.

Porque a Natureza fala, o poeta escreve: “Conheço as palavras das árvores” (14). O homem é um ser de linguagem, todo o seu afecto, saber e história residem nela. Por isso, ao interrogar a palavra, é o mundo e a vida que questiona. E também por isso a liberdade reclamada para a palavra é a liberdade de ser, e não apenas a de ser proferida ou impressa. Porque o universo é sentido como linguagem, a poesia tem nele um referente e um interlocutor, e ao poeta, o primeiro tema que se lhe impõe é o da palavra. É assim que se estabelece, entre a Natureza e a palavra, e entre a linguagem e o homem, a maior de todas as correspondências.

Mas deixemos a porta aberta, neste domínio das correspondências, em que verde é a letra “u”, como escreve Rimbaud, a transmutações mais fáceis do que as alquímicas: quando num poema falamos desse assunto, nós, que escrevemos em português, temos também em mente e no plano de significação imediata dos termos, a correspondência amorosa, o estabelecimento de elos afectivos entre leitor e autor. O poeta assinou um pacto consigo mesmo e com o público, tem um compromisso ao qual sente que deve responder. E a liberdade faz parte dessa relação de intersubjectividade, em que de um lado existe uma expectativa e do outro o desejo de correspondência. Eis o que lemos em “Génese” (1), o mais recente livro de António Ramos Rosa, no qual não havia razão para estar presente o tema da liberdade, se essa liberdade fosse apenas aquela que nos garante a democracia:

Escrever é procurar corresponder
Ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe
A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical
E a sua metamorfose é a invenção de um espaço
De correspondências que visam uma esfera inviolável

Vivemos num mundo prático, utilitário, economicista. O nosso cérebro, mesmo poeta, só se satisfaz com argumentos contabilizáveis. Por isso, ainda o poeta vivia no Algarve, fez contas à vida, interrogou-se sobre o sentido da sua e do que escrevia. Olhando para o resultado das contas, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa. Sabemos qual foi a opção de António Ramos Rosa: a liberdade do franciscanismo poético. Não uso sem critério a imagem de S. Francisco: na Natureza dos poemas não faltam pássaros com os quais o poeta comunica. E apesar de não transparecer na obra nenhum tema católico, a verdade é que esvoaçam anjos nela. Por muito que sejam Anjos de terra (15), e o poeta esclareça que os anjos que conhece são de erva e de silêncio (16), anjos são anjos, e vivem na cor da esperança.

Sem emprego, sem cargos públicos, a vida, dedicada apenas à arte, só podia oferecer-lhe dificuldades materiais. No entanto, essa marginalidade franciscana não impediu Ramos Rosa de ter voz activa nas convulsões políticas e sociais em geral, e em particular nas anteriores à revolução portuguesa do 25 de Abril. Pertenceu ao MUD juvenil, embora nunca tivesse militado em nenhum partido político. Por ter ido receber Maria Lamas a Portimão, com outros intelectuais, foi preso pela PIDE, a Polícia política de então (17).

Entende-se assim que o desprendimento por empregos ou cargos públicos, e mesmo a recusa em receber um prémio do SNI, correspondeu à rejeição de um sistema político anti-democrático. Se S. Francisco falava às aves e Santo António aos peixes, é porque com os homens não era possível o diálogo.

Insisto porém em que o tema da liberdade, embora vinculado a estas experiências de vida, não está preso a elas - é mais amplo e mais profundo. Eduardo Pitta considera os ensaios “emblemáticos de uma obra centrada na noção de liberdade” (18). Essa centralidade constitui uma rede que põe todos os poemas em comunicação, não apenas próprios como alheios. Tal como a linguagem, também a liberdade é interpelada quanto ao que de facto é e quanto aos seus limites. No seu último livro, “Constelações”, a liberdade é condicional, depende do desaparecimento do sujeito na brancura, isto é, da anulação do ser na inexistência de cor:

Talvez a condição da liberdade seja esta abolição no branco
Que tornará possível a nudez de um começo o esplendor do novo (19)

A liberdade, em Ramos Rosa, é a possibilidade de sermos o que queremos ser. Resultado da soma de querer e poder, a liberdade é tão difícil de alcançar que se projecta no plano da utopia. Nos versos que acabei de citar, a abolição no branco não é absoluta: ela abre a porta à renovação, e por conseguinte ao esplendor cromático da vegetação. Esta brancura é o lugar de onde fala o sujeito poético, o vazio de sentido e de valores que José Augusto Mourão, em ensaio sobre Ramos Rosa publicado agora pela primeira vez, no TriploV, diz ser insuportável ao pensamento ocidental (20). A nossa natureza tem horror ao vazio, por isso lança sementes em todos os buracos.

Se não podemos dizer que António Ramos Rosa seja um poeta católico, apesar dos seus anjos, também não poderemos dizer que seja um poeta hermético. Mas que há na sua poesia uma obra ao verde, bem primaveril, lá isso, há, como vamos ver.

3. As palavras são cores

A poesia de António Ramos Rosa deambula entre conceptualismo e pintura. Certos poemas são muito impressionistas no colorido, e já sabemos que o poeta também é artista visual e também faz crítica de pintura. Não admira assim que nos surja uma criação poética estimulada pela percepção da luz e das cores. Por vezes, à semelhança da pintura moderna, mais voltada para o efeito plástico dos materiais do que para o que possam representar, as palavras são cores, pincelando a página de verde, azul, branco, negro e amarelo, que simultaneamente produzem música:

A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multiplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul, praia vermelha,
voos de andorinha negros. (21)

Nos poemas pictóricos, sobretudo nos que surtem efeito figurativo, percebemos corpos e objectos em movimento num discurso que se apresenta como paisagem. Nem todos os elementos da paisagem são naturais, concretos como os pontos de referência do conhecido que guardamos na memória. Mas eles tornam-se elementos naturais pelo facto de terem certas cores. A cor é algo próprio da matéria, ou é algo que a luz faz reagir na matéria. Em António Ramos Rosa, as cores dominantes são o branco e o verde. Na brancura há sinal negativo, é quase sempre uma falta que o poeta precisa de cumular com a palavra, pois a falta está associada à página antes do Génesis, a génese da escrita, como o último título do poeta deixa claro: “Génese” tem por tema o nascimento do poema, ser orgânico, animal, como Aristóteles o definiu, por isso expresso pelo léxico normal do parto. O poema é um elemento da Natureza, como uma árvore. Daí que fale dele como gerado num “útero verde” (22).

No extremo oposto da brancura, signo da falta e do vazio, não está o negro. O negro, tal como o branco, é sinal de ausência de luz, e a luz não é só um elemento natural, próprio da physis, ela é também um elemento psíquico e cognitivo: a treva mete medo porque não sabemos o que se esconde nela, ao passo que a luz acalma ao iluminar objectos de serenidade. A luz torna visíveis as coisas, por isso as ficamos a conhecer pelo olhar e pela inteligência.

A equilibrar a balança, pesada de carga negativa com a brancura, fica, em Ramos Rosa, uma cor positiva, eufórica, cheia de esperança - o verde, evidentemente. Basta notar que quase sempre o verde surge em situação de redundância, para nos apercebermos do seu valor genesíaco, o valor de “útero verde”.

Na poesia rosiana, as coisas mexem, os elementos são dotados de som, forma, cor e velocidade. Alguns reiteram-se, como ícones que conhecemos noutros autores e noutras pinturas, caso da mulher que irrompe venusinamente do seio das águas. Os textos conceptuais tendem para a filosofia, esboçando ideias e temas. Além da liberdade, do amor, do erotismo, da questa de felicidade, da génese, etc., aponte-se ainda a adolescência como estado privilegiado da poesia. Neste último livro, “Génese seguido de Constelações”, a adolescência associa-se naturalmente à fertilidade, ela é um estado de alma propício para a criação poética:

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos de neve (23)

Ramos Rosa é um poeta nervoso e inquieto, por isso certamente não encontraremos poemas puros, nem fóticos nem reflexivos, antes híbridos. A sua lírica acusa variações e mudanças bruscas de ritmo, não só ao longo dos anos como ao longo dos poemas de um mesmo livro, e até num só poema. Para usar um modelo de análise fornecido por Fontanille, numa obra que trata da semiótica da luz (24), e que propõe três estesias na obra de cultura, a estesia reflexiva, a estesia transitiva e a estesia recíproca, podemos considerar que a estesia reflexiva, em Ramos Rosa, diz respeito aos poemas centrados na relação do sujeito consigo mesmo; a estesia transitiva, que é a relação entre o sujeito e o mundo, tem um exemplo transparente em frases como “escrevo árvores”, “escrevo casas”, em que a transitividade do verbo se desloca dos seus objectos próprios para algo que pertence de resto à estesia reflexiva, por ser a concepção da linguagem como organismo, logo como criadora do mundo: o poeta não escreve poemas sobre a natureza, as palavras são as cores, as casas, por isso a linguagem cria a Natureza. E finalmente, ensina Jacques Fontanille, há a estesia recíproca, uma dimensão na arte que cria relações de intersubjectividade. A intersubjectividade, em Ramos Rosa, passa, como já referi, pelo desejo de correspondência, de responder ao pacto amoroso com o leitor; às vezes, mais explicitamente, com a leitora.

O movimento entre o reflexivo, o inventivo e o amoroso pode relacionar-se com posicionamentos paradigmáticos, próprios de opções de escola ou de movimento. É admissível que o poeta recuse a transparência, se lhe parece colada a uma estética fora de moda, mas Ramos Rosa alcançou uma posição em que essas questões se tornam insignificantes e os conceitos a que se ligam não passam de preconceitos. Eu diria que as variações se devem ao desejo de obscuridade, pois há na poesia um lado de enigma e mistério que convoca a vontade de conhecimento, e também a deslizamentos do humor. Em geral a revelação e o irrevelável andam de mãos dadas, acontece um poema começar com uma ideia claramente expressa, que depois se enigmatiza e transmuta em pintura muito colorida, passando-se assim de um estilo a outro completamente diverso. Vejamos um poema para exemplo, de que cito os dois primeiros e os dois últimos versos. Entre eles, estabelece-se uma polifonia de pinceladas que impedem o que, a desenvolver-se segundo as expectativas criadas nos versos iniciais, daria qualquer coisa como um ensaio, e um ensaio certamente sobre a transparência de cristal das palavras:

Talvez a simplicidade nunca seja atingida
Porque a nudez está entre a ficção e o real
[…]
Que ele reúna a chama e o grito numa lâmpada
De cristal e uma sombra se mova como uma lâmpada na lâmpada. (25)

4. a obra ao verde

Para entrarmos de chofre no tema da obra ao verde, dou como exemplo o “Telegrama sem classificação especial” (26), em que aparece um sujeito de enunciação plural, o nós, todos os que partilhavam com o poeta as mesmas contrariedades. Vejamos os primeiros versos:

Estamos nus e gramamos.



5. Referências

(1) Escrever é procurar corresponder. Em “Génese seguido de Constelações”. Lisboa, Roma Editora, 2005.
(2) João Rui de Sousa, “António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo”. Leiria, Diferença, 1999.
(3) Ana Paula Coutinho Mendes, “Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa ”. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003.
(4) Ana Paula Coutinho Mendes, “O poeta na rua, Antologia portátil de António Ramos Rosa”. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2004.
(5) Casimiro de Brito, “Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia”. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2001.
(6) Augusto Miranda (ed.), “Encontros de Outono - 1999, Homenagem da cidade de Faro a António Ramos Rosa”. Câmara Municipal de Faro, 1999.
(7) “A poesia moderna e a Interrogação do Real”. Lisboa, Arcádia, 2 vols, 1979-1980.
(8) “Poesia, liberdade livre”. Lisboa, Ulmeiro, 1986.
(9) “Incisões oblíquas: estudos sobre poesia portuguesa contemporânea”. Lisboa, Editorial Caminho, 1987.
(10) “A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas”. Lisboa, Editorial Caminho, 1991.
(11) Poema dum funcionário cansado. In: “O grito claro”, 1958.
(12) António Ramos Rosa - Só a poesia. Entrevista de Ana Marques Gastão no Diário de Notícias, 4 de Julho de 1998.
(13) Estou vivo e escrevo sol. Em “Animal Olhar”, Lisboa, Plátano, 1966.
(14) Os prestígios simples. Em “Volante Verde”, 1986.
(15) Anjos de terra. Em “O não e o sim”, 1990.
(16) Os anjos que conheço são de erva e de silêncio. Em “Ciclo do cavalo”, 1975.
(17) Maria Leonor Nunes, António Ramos Rosa, Vida de palavras. Jornal de Letras, 4 de Abril de 2001.
(18) Eduardo Pitta, “ Constelação Terrestre”. Diário de Notícias, Outubro de 1998.
(19) Eis a cal da página sem constelações. Em “Génese seguido de Constelações”, 2005.
(20) José Augusto Mourão, Em torno de um texto teórico de Ramos Rosa. Em linha em http://triplov.com/poesia/ramos_rosa/jam/index.htm.
(21) Göetz. Em “Animal Olhar”, 1975.
(22) Se a vida como um rio tivesse duas margens. Em “Génese seguido de Constelações”, 2005.
(23) Há palavras que esperam que o branco as desnude. Em “Génese seguido de Constelações”, 2005.
(24) Jacques Fontanille, «Sémiotique du visible - Des mondes de lumière». PUF, Paris, 1995.
(25) Talvez a simplicidade nunca seja atingida. Em “Génese seguido de Constelações”, 2005.
(26) Telegrama sem classificação especial. Em «Viagem através duma nebulosa”, 1960.
(27) O obscuro. Em “Volante Verde”, Lisboa, Mooraes Editores, 1986.
(28) Esta leve obstinação de um cálido tremor. Em “Génese”, 2005.
(29) Escrevo para que a liberdade respire. Em “Génese”, 2005.
(30) As palavras no centro vazio. Em “Boca incompleta”, 1977.
(31) Transcrição da terra. Em “Animal olhar”, 1975.
(32) É assim que vem o fogo como troncos de uma grande pedra. Em “Génese seguido de Constelações”, 2005.

Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Escritora, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Dirige o TriploV [http://triplov.org]. Autora de livros como Herberto Helder, Poeta Obscuro (1979) e Lápis de Carvão (2005). Conferência proferida na homenagem a António Ramos Rosa na II Bienal de Poesia. Câmara Municipal de Silves, abril de 2005. A fotografia de ARR é de Maria José Palla. Contacto: estela@triplov.com. Página ilustrada com obras de Nicolau Saião (Portugal).

ANTÓNIO RAMOS ROSA - Biografia

António Ramos Rosa

Nascimento: 1924 Faro
País: Portugal


Poeta e ensaísta português, natural de Faro. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, Ramos Rosa tomou o rumo para Lisboa, depois de ter passado a juventude em Faro. Na capital, vivendo intensamente a vitória dos Aliados, trabalhou no comércio, actividade que logo abandonou para se dedicar à poesia.
Nos anos cinquenta, um dos directores das revistas Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia. Colaborou ainda com textos de crítica literária na Seara Nova e na Colóquio Letras, entre outras publicações periódicas.
Como poeta, estreou-se na colectânea O Grito Claro (1958). Estava criado o movimento da moderna poesia portuguesa. Ramos Rosa era o poeta do presente absoluto, da «liberdade livre» e sobe todos os degraus da admiração europeia. Em Portugal é comparado com os grandes escritores nacionais. Urbano Tavares Rodrigues considerou-o como o empolgante poeta da coisas primordiais, da luz, da pedra e da água.
Em meados dos anos sessenta, Ramos Rosa radicou-se em Lisboa, onde publicou Viagem Através Duma Nebulosa (1960). Um dos mais fecundos poetas portugueses da contemporaneidade, a sua produção reflecte uma evolução do subjectivismo, em relação à objectividade. Reflectem-se nela variadas tendências, desde certas formas experimentais até a um neobarroquismo. A sua escrita, caracterizada por uma grande originalidade e riqueza de imagens tácteis e visuais, testemunha muitas vezes uma fusão com a natureza, uma busca de unidade universal em que o humano participa e se integra no mundo, estabelecendo uma linha de continuidade entre si e os objectos materiais, numa afirmação de vida e sensualidade. Nos seus textos, está frequentemente presente uma reflexão sobre o próprio acto da escrita e a natureza da criação poética, a questão do dizível e do indizível.
Ramos Rosa, também tradutor, escreveu dezenas de volumes de poesia, entre os quais Voz Inicial (1960), Sobre o Rosto da Terra (1961), Terrear (1964), A Constituição do Corpo (1969), A Pedra Nua (1972), Ciclo do Cavalo (1975), Incêndio dos Aspectos (1980), Volante Verde (1986, Grande Prémio de Poesia Inasset), Acordes (1989, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores), Clamores (1992), Dezassete Poemas (1992), Lâmpadas Com Alguns Insectos (1993), O Teu Rosto (1994), O Navio da Matéria (1994), Três (1995), As Armas Imprecisas (1992, Delta, Pela Primeira Vez (1996) e A Mesa do Vento (1997, primeiramente editado em França), Pátria Soberana e Nova Ficção (2000).
Entre os seus ensaios, contam-se Poesia, Liberdade Livre (1962), A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), Incisões Oblíquas (1987), A Parede Azul (1991) e As Palavras (2001).
Tem recebido numerosos prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1988. É geralmente tido como um dos grandes poetas portugueses contemporâneos.
Para Ramos Rosa, escrever é, sempre, a necessidade de respirar as palavras e de às palavras fornecer o frémito do ser, os pulmões do sonho, e, com elas, criar a dádiva do poeta.
Em 2001, o poeta lançou Antologia Poética, com prefácio e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Não posso adiar o amor
Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


de Viagem através duma Nebulosa(1960)



Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.


de Viagem através duma Nebulosa(1960)



Para uma amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo da algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra,quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.



de Viagem através duma Nebulosa(1960)



O boi da paciência


Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!

Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizarr de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?

Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros.Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:Dêem árvores para um novo
recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me limpe o sangue!
Recomeçar!

Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele

Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como perservar este amor
ostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?

Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão

A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!


de Viagem através duma Nebulosa(1960)



Casa de sol onde os animais pensam
erguida nos ares com raízes na terra
ampla e pequena como um pagode
com salas nuas e baixas camas
casa de andorinhas e gatos nos sótãos
grande nau navegando imóvel
num mar de ócio e de nuvens brancas
com antigos ditados e flores picantes
com frescura de passado e pó de rebanhos
ó casa de sonos e silêncios tão longos
e de alegrias ruidosas e pães cheirosos
ó casa onde se dorme para se renascer
ó casa onde a pobreza resplende de fartura
onde a liberdade ri segura


de Voz Inicial(1960)



Estou vivo e escrevo sol
Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maraviha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


de Estou Vivo E Escrevo Sol(1966)



No silêncio da terra
No silêncio da terra.Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber,respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me,sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me,flectindo-me
no intervalo aberto.Não sei se principio.
Um rosto se desfaz,um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.

Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.

Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido,unido,silencioso umbigo
do ar.


o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.


de A Pedra Nua(1972)



Onde mora a memória obscura,onde
esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra,
onde o corpo se nega,onde a noite ensurdece,
caminho sobre pedras na minha casa pobre.

Não conheço esse lago,não fui a esse país.
Mas aqui é um termo ou princípio novo.
Com a baba do cavalo,com os seus nervos mais finos
reconstruí o corpo,silenciei os membros.

Não se estancou a sede,no mesmo caos de agora,
mas a língua rebenta,as vértebras estalam
por uma nova língua,por um cavalo que una

a terra à tua boca,e a tua boca à água.


de Ciclo do Cavalo(1975)



Semelhante à imóvel
transparência
à inesgotável face
à pedra larga onde o olhar repousa

Água sombra e a figura
azul quase um jardim por sob a sombra
a iminência viva aérea
de uma palavra suspensa
na folhagem

Semelhante ao disperso ao ínfimo
chama-se agora aqui o sono da erva
a ligeireza livre
a nuvem sobre a página


de A Nuvem sobre a Página(1978)



As palavras
Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde

As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco

Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas

Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?

As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos

As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras?Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas

As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana

As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado

Que enfrentam as palavras?O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sal
a da sua língua nascem estrelas trituradas


de Gravitações(1984)



Um astro
Ouve a longa incoerência da palavra e a memória
do sangue que se apaga.Ouve a terra taciturna.
Tudo é furtivo e as sombras não acolhem.Nenhum jardim
de segredos.Nenhuma pátria entre as ervas e a areia.
Onde é que nasce a sombra e a claridade?

Eis as vertentes da terra árida e negra.Quem
reconhece o equilíbrio das evidências serenas?
Estas palavras têm o odor de portas enterradas.
Como dominar a desmesura da ausência e a vertigem?
Como reunir o obscuro em palavras evidentes?

Escuta,escuta a longa incoerência da terra
e da palavra.Ao longo da distância
murmura a perfeição monótona de um mar.
Num pudor de esquecimento um astro se aveluda
em denso azul na corola do silêncio.


de Volante Verde(1986)



Nascimento último
Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono,germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite,lentamente,sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono,na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento,na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui,o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser,os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.



de No Calcanhar do Vento(1987)



O amor cerra os olhos,não para ver mas para absorver:a obscura transparência,a espessura das sombras ligeiras, a ondulação ardente: a alegria.Um cavalo corre na lenta velocidade das artérias.O amor conhece-se sobre a terra coroada:animal das águas,animal do fogo,animal do ar:a matéria é só uma,terrestre e divina.


de Três Lições Materiais(1989)



A palavra
A palavra é uma estátua submersa,um leopardo
que estremece em escuros bosques,uma anémona
sobre uma cabeleira.Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua,mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos,os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.


de Acordes(1989)



Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal

Vejo o solo extinto
Não oiço ninguém
e não regresso

Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras


de Intacta Ferida(1991)



A noite chega com todos os seus rebanhos
Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo
Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
O último pássaro calou-se.As estrelas acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.


de A Rosa Esquerda(1991)



Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto


de O Teu Rosto(1994)

ANTÓNIO RAMOS ROSA

O Boi da Paciência

Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros:
Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!

Pedro Calapez

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Uma Voz na Pedra


Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.


Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

ANTÓNIO RAMOS ROSA

No Fundo Aberto


Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso
como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho,
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícola do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.

Pedro Calapez

ANTÒNIO RAMOS ROSA

Uma pausa, não de plumas, mas elástica


1

Uma pausa, não de plumas, mas elástica,
que demorasse em si a paz ardente
e o ardor profundo de uma alta instância.
Que fosse o esquecimento na folhagem
e a espessa transparência da matéria.
O pulso pronunciaria a amplitude
do instante inocente. A obra acender-se-ia
na inteligência dos signos mais aéreos.

2

A inadvertência pode ser um prelúdio carnal
na volúvel leitura de quem adormeceu.
O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre.
Por uma forma ausente a matéria ramifica-se
na insolência branda de umas ruínas perfeitas.
Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro.
Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula.
A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma.
Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo.
É a abundâcia da origem e o seu orvalho azul.
São as armas vegetais sobre as janelas da terra.
É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas.

3

Na justa monotonia do meio-dia
oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que a nostalgia acende.
No silêncio sinto numa só cadência
a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros.
Pelas veias o fogo da cal é branco e liso
e a mais remota substância culmina num rumor redondo.

In: A Rosa Esquerda (1991)

Pedro Calapez

ABTÓNIO RAMOS ROSA

Que cor ó telhados de miséria


Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?


Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijamos
nunca parti


Não sei que idade tenho


Quando havia antes um antigamente
havia uma esperança
agora no próprio coração da ilusão
onde a água limpa as pedras das ruínas
entre destroços límpidos
deito-me sobre a minha sombra e durmo
e durmo


Quando havia antes um amanhecer
à beira do abismo
agora no próprio coração do coração
durmo estrangulando um monstro inerme
um palhaço de palha seca e pálido
quando havia antes um caminho


Não houve nunca amigos nem, pureza
Nem carinhos de mãe salvam a noite
É preciso ir mais longe na incerteza
É preciso no silêncio não escutar


A manhã que eu procuro não foi sonhada
Uma árvore me ignora na raiz
Perfeitamente desesperado é o meu sonho
Os pássaros insultam-me na cama
Só com doidos com doidos amaria
perfeitamente presente na frescura
do mar


Uma casa para eu ter a humildade de ser espaço
a líquida frescura duma jarra
um passo leve e certo em cada sombra
um ninho em cada ouvido
de doces abelhas cegas


Uma casa uma caixa de música e sossego
Um violão adormecido na doçura
Um mar longínquo à volta atrás do campo
Uma inundação de verdura e espessa paz
Uma repetida e vasta constelação de grilos
e os galos álacres do silêncio


Um mar de espuma e alegria obscura
um mar de espuma e alegria clara
entre o verde e a brisa


Na brancura dos quartos
a inocência poderá sonhar desnuda
os insetos poderão entrar
juntamente com as plantas e as aves
Uma longa asa passará
O mundo e o silêncio a mesma ave
e o mar
o mudo leão longínquo e fresco
faiscará entre o ver e as lâminas solares

PEDRO CALAPEZ

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Poema dum Funcionário Cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.