sexta-feira, março 30, 2007

Rui Aguiar

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Luís de Miranda Rocha

A LUZ DA NOITE, O SOM DO MUNDO

1
Há um rumor, na voz que ouve, o mundo canta
Na voz que fala, o mundo ouve, o som do mundo
A luz da noite, incerta vaga, escuramente
A luz da noite, o som do mundo, azul escuro

Há um rumor, intenso grave, ouvido canta
O som do mundo, que no ar, o alterado
Esse rumor, imenso tão, suave grave

Ouvindo-o, esse rumor
Nocturno tão, grave ruído

2
Que de noite ressoa, mais intenso durante
Todo o som de que o mundo, e mais forte descanta
Obscuro intenso, alumínio ilumínio
Tanto a vida do mundo, percepção alterada
Rumor que ouvindo-o, que do mar que no ar
Percepção de que anda, que resvala desliza
Decrescente decai, declínio crescente
Alterado intenso, nos ouvidos ressoa

3
Que descanta, isso tanto, tão ouvido
Obscuro, na cabeça, arterial

Tão ouvido, que descanta, que altera
Desaltera, gravemente, esse ruído

Que altera, desaltera, que devasta
Indemente, gravemente, enrouquecido

Que devasta, tão ouvido, esse rumor
Esse som, que descanta, que nocturno

4
Anoitece o intenso quando ouvido da noite
Grevemente no ar o rumor o ruído
Da desordem do caos gravemente crescendo
O ouvido durante o que ouve o tremor
Do que ouve entreouve o sentido que treme
Anoitece o intenso excessivo intenso
O sentido de mais de que o caos que se forma
Anoitece entristece o sentido que cresce
Rumor que evolui do sentido no censo
Que furor que tremor do sentido oscila

5
Ouvindo-o indemente que ruído rumor
Tão agreste descanta esse som alterado

Em furor alterado o resíduo crescente
Ouvindo-o indemente azul grave obscuro

Ilumínio alumínio azul grave e intenso

...

10
O alastro indemente de que senso desliza
Alumíneo rumor grevemente veloz
De que senso o rumor progressivo que cresce
Alumínio intenso que intensivo decai

Numeroso inúmero
O clamor de que
Um furor que desvive
O seu som tão intenso

Um furor que descanta
Que desvive alterado
O som grave do mundo
Que oscila resvala
Que resvala flui

11
Indomínio crescente do sentido que anda
Alterado rumor inclínio que cresce
Na vida e no mundo na noite do mundo
No som de que avida do mundo descanta

Toda a vida que ouve nesse som que descanta
O sentido que cresce devagar e ligeiro

12
Escura vaga, azul a luz, da noite cresce
Por dentro ouvido, gravemente, o seu rumor
Intenso alto, luminoso que ilumínio
Alumínio, que ressoa, triste grave

Que descanta, como canta, tão incerto
Esse som, devastado nos ouvidos
Que ruído, que do mundo, quanto ouve
Tão nocturno, ilumínio, deflagra

13
O tão agreste grave, o som que anda
No ar durante a noite, o som do mundo
No som grave da noite, o mundo ouve
No som do mundo a noite, o mar demente

14
A noite, que do mundo, o som descanta
O canto, que do mundo, a luz depende

A noite, percepção, de que no ar
O mar, o som do mar, que no ar anda

A terra, percepção, de que terrestre
O som, do mundo ouve, intenso canta

A luz, tão irreal, demente que
No ar, celeste tão, grave cintila

15
O som do mundo, anda no ar, tumulto azul, imenso grave
O som do mundo, o som da noite, a luz da noite, azul escuro

A luz da noite, estrito intenso, a luz o seu, tenso alumínio

...

20
Tão grave o som do mundo canta
Intensamente nos ouvidos
Esse rumor esse furor
Esse clamor devastador
Ruído tão nocturno triste
Crescendo tão veloz alastra

21
O som do mundo ouve a noite canta
Um som tão grave triste nos ouvidos
O som do mundo tanto tão intenso
Um som imenso tanto um som nocturno

22
O que ouve no ar o que anda no ar
Esse som de que o mundo
De que a vida descanta
Esse errado rumor
Esse som obscuro

23
Ouvindo-o, esse furor, do mundo anda
No ar, e nos ouvidos, na cabeça
Descanta, grave tarde, quando a noite
Descanta, grave quando, o fim do dia

Ouvindo-o, que descanta, esse furor
Intenso, na cabeça, nos ouvidos
No ar, crepuscular, na formação
Da noite, esse furor do mundo vivo

24
Esse som veemente, tão demente indemente
Na cabeça a bater, a bater a bater
Nos ouvidos por dentro, da cabeça intenso
O que ouve tão grave, tão agudo o que ouve
O que ouve esse som, excessivo devasta
O demente indemente, devastado que canta
O que ouve esse som, o que canta descanta

25
Azul escuro grave a noite canta
O brilho frio tenso das estrelas
A pouca luz escura densa vê
Nocturno triste o som do mundo ouve

...

50
O que ouve esse vasto
Rumor grande que anda
Tão intenso no ar
Tão intenso ligeiro
O som grave do mundo

O que ouve de onde
No que ouve entrevê
De onde vem para onde
De onde a vida que som
Que sentido desliza

51
O que ouve persistindo esse rumor
Em furor veemente se transforma
Sensação que crescente percepção
Do que ouve persistindo tão incerto

52
Esse alastro luminoso da cabeça
Dos ouvidos tão veloz ao coração
Que ouvido que rumor do que ouvido
Que pode dentro escuramente luminoso
Agreste grave canta o som do mundo

53
Esse furor, agreste que, agudo grave
Na cabeça, indemente, o som descanta
O som do mundo, intensa vaga, vasta informe
O som do mundo, alegre triste, que alastra

Que se ouve, nos ouvidos, obscuro
Alumínio, ilumínio, densidade
Excessiva, que perturba, que obstrui
A incerta, percepção, irreal que

54
Radiante, obscuro, que descanta
Alumínio, ilumínio, se o vê
Se o ouve, que desliza, que resvala
Tão demente, indemente, que ruído

55
Ouvido como a noite o mundo anda
Que canta que descanta que nocturno
Intenso dentro o ouve é que rumor
Furor claro escuro grave intenso

...

60
Deflagra que luz
Tão agudo tão grave
Tão imenso tão forte
Luminoso alumínio
Tão real irreal

Que transluz que rumor
Tão suave e agreste
Na cabeça por dentro
Nos ouvidos interno

61
Vaga luz alumínea
Que pequeno ilumíneo
Que se ouve se canta
Que se ouve por dentro

Que se ouve por dentro
Ilumíneo rumor
Tão intenso que ouve
Que ouvido se altera

Que ouvido se altera
Vaga luz que ouvida
Que se ouve que anda
Que desliza ligeiro

62
Que ligeiro desliza, o tão grave rumor
Dos ruídos externos, o resíduo crescente
Do ardente ilumínio,que do som deflagra
Pontual gradual, tão intenso crescendo
O descanto do mundo, na cabeça ressoa

63
Que percepção, que se desloca,
Que formação, de que imagem
Tão vaga tão, incerta nula
Desgrave tão, e alterada
Desalterado, crescimento
Ondeio que, ondula o ar

64
A voz que canta, a sua fala, o som da voz, o som que canta, é obscuro.
O som que ouve esse rumor, do mundo ouve, a noite cresce.
É um clamor, cada vez mais, extenso e alto.
É um furor, devastador, intenso e nulo.

65
Dirigi-se esta fala a que ouvidos
O som o que da voz aí desliza
Diz pouco esse dizer é tão escuro
Nas margens faz-se ouvir incertamente
Dos centros de que vem de que resvala
Não tem há muito não origem nem
Há muito que não tem nenhum destino
Descentro que deriva desvaria
O sentido que tem é senso informe
A fala que se ouve aí descanta
Descanto progressivo que se ouve
O canto o grave que no som se diz

66
A voz que fala, a quem a ouve, o som durante
Esse rumor a noite canta, o som ruído
Devastador, imenso cresce, o mundo anda
A vida anda, essa deriva, a vaga incerta
Nocturno tão, esse som grave, o mundo triste

A percepção, que litoral, de noite o mar
Imenso o som, que grave canta, o mundo ouvido
A percepção, de que a vida, sensação
A sensação, de que no ar, o som de que


Luís de Miranda Rocha
in: A LUZ DA NOITE, O SOM DO MUNDO
Novo Imbondeiro,2001

quarta-feira, março 28, 2007

Eduardo Batarda

Ruy Belo

E Tudo Era Possível

Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido.
Chegava o mês de Maio, em tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido.
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída.
Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer.
Só sei que tinha o poder de uma criança,
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer...

Canção do Lavrador

Meus versos lavro-os ao rubro
nesta página de terra
que abro em lábios. Descubro-
-lhe a voz que no fundo encerra
Os versos que faço sou-os
a relha rasga-me a vida
e amarra os sonhos de voos
que eu tinha à terra ferida
Poema que mais que escrevo
devo-te em vida. No húmus
a rego simples eu levo
os meus desvairados rumos
Mas mais que poema meu
(que eu nunca soube palavra)
isto que dispo sou eu
Poeta não escrevas lavra

Meditação Anciã

Aqui eu fui feliz aqui fui terra
aqui fui tudo quanto em mim se encerra
aqui me senti bem aqui o vento veio
aqui gostei de gente e tive mãe
em cada árvore e até em cada folha
aqui enchi o peito e mesmo até desfeito
eu fui aquele que da vida vil se orgulha
Aqui fiquei em tudo aquilo em que passei
um avião um riso uns olhos uma luz
eu fui aqui aquilo tudo até a que me opus

A Mão no Arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição

É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente


ADVENTO DO ANJO

Ontem e anteontem já passados
arredondemos os olhos à volta
daquela antiga realidade
alfa ómega primeira e última
que sempre diante na fronte trouxemos
Circundemo-la de um colar de palavras
sem pálpebras pobres pálidas de rosto
roubadas às esquinas eivadas
de arestas agrestes pontiagudas
Percamos palavras como folhas
perdem no Outono as árvores, varridos
pelo contínuo apascentar de cuidados
Já se vão areando as praias de amanhã
desde ontem a morte morreu
E vamos e banhemo-nos no mar
que o anjo forte cúpula do tempo
se sente vir anunciar e fechar

Ruy Belo

Os balcões sucessivos sobre o rio

Os balcões sucessivos sobre o rio
as tesouras de poda nas roseiras
a sonolência lânguida e perversa
esse todo coerente e sobre ele apenas
a abóbada da minha perfeição
é esse o meu convite à desistência
a pena menos pública do mundo nos
lagos das finas flores dos sabugueiros
onde a mulher soltava os cabelos
pra que neles se prendesse o cheiro a erva
Ela tinha um aspecto inesperado
vinha com o vestido cor magenta nos
braços que lhe cresceram sobre a terra
movia-se ao andar como uma barca
Importa-me é o curso do dia e da noite
Vou andar um bocado nos caminhos
é pela hora em que não há ninguém
nudez desprevenida dos meus dias
mas só de noite desço até ao mar após
as sete horas da tarde hora crepuscular
os cheiros confortáveis e antigos
imagens dum lirismo fraudulento
um conforto algum tanto apreensivo
coisas que desde a infância a construíam
Mudo de opinião continuamente
espero o teu regresso pela tarde
e cuidadosamente velo a minha cólera
A vida é para mim pesar de pálpebras
leitura de discursos no outono
na casa abandonada e submetida à chuva
Regresso afinal aos próprios hábitos
sorrisos de mulheres sobre a areia
sou fiel à tristeza e pouco mais
e meto então um lenço num dos bolsos
que cheira ao perfume dos pinheiros
Ave de alarme sou deixem-me só
sou um contemporâneo assisto a tudo
os sinos vesperais nos dias de verão
o cão que passa numa encruzilhada
um cântaro que racha inexplicavelmente
confundido no hálito do mar
a minha saudação aos infantes do medo
crianças que iniciam o andar
Espero por alguém espero pelo sol
pla doçura estival da laranjeira
ando pelos caminhos muito tempo
e passo pelas portas devassadas pelos ventos
em cujos gonzos sopram agonias
E espero de novo a floração da primavera
Não quero nada quero estar presente sobre
as dunas do começo dos pinhais
nesse mundo de medos e animais
onde abri os meus olhos para a luz de agora
E perco todo eu em contriçães
ó terra branca e carnal e triste
as minhas madrugadas do sargaço
abertas nos bocejos da neblina
quando o tempo é suave e chega em dunas
à sensibilidade das narinas
nas horas generosas da maré



Ruy Belo
Despeço-me da Terra da Alegria
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

Eduardo Batarda

Ruy Belo

O Jogo do Chinquilho

Renasce neste largo a minha infância
a minha vida tem aqui nova nascente
e jorra de repente com o ímpeto do início
O tempo não passou ou só a consciência
que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás
a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo
de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias
de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo
num espaço demarcado onde as coisas e os homens
eram tanto que eram simplesmente
só essa consciência e sensação me fazem suspeitar
de que passou o tempo que nunca passou
O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho
o ruído das malhas os paulitos
o sol poente sobre si redondo como simples
malha atirada por alguém pelo espaço do dia
e prestes a cair no mar como nas tábuas
o gesto perdulário e impensado de jogar
a malha como quem num gesto joga a vida
as silhuetas hirtas dos que assistem
de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos
tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos
como se aqui ninguém houvesse envelhecido
nem sofrido ou morrido ou suportado
toda a imensa fome requerida para produzir um rico
como se aqui ninguém tivesse demandado
longe de aqui o seu país noutros países
Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo
Até este café onde sentado olho e penso por olhar
é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai
a primeira cerveja uma cerveja vinda
através do calor do dia de verão
nesse cesto de vime nesse poço mergulhado
É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca
há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida
o sabor das mulheres das raparigas
inacessíveis sempre como um absoluto
sempre impossível tido no entanto por possível
o sabor da derrota ou o sabor da terra
sensível dia a dia nos meus dedos
e um dia susceptível de me encher a boca para sempre
Envelheci eu sei e só ganhei
o que perdi. Sou de uma adulta idade
E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou
e pelo céu do tempo houve um homem que passou
ou uma certa malha arremessada por acaso à vida
e viva na precária trajectória antes de caída.

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Editorial Presença

Eduardo Batarda

Ruy Belo

Como quem escreve com sentimentos

Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada



Ruy Belo
Despeço-me da Terra da Alegria
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

Eduardo Batarda

sexta-feira, março 23, 2007

Ruy Belo

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e lhe chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


"Portugal Futuro", Palavra[s] de Lugar, in Homem de Palavra[s]

quarta-feira, março 14, 2007

Candido Portinari

Adélia Prado - Casamento

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

Adélia Prado

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
– dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.


Festa do corpo de Deus

Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
“Ó crux ave, spes única
Ó passiones tempore”.
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
É próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta arvore de execração
o que dizer é amor,
amor do corpo, amor.

Candido Portinari

Adélia Prado

Inspiração Divina e Inteligência Humana na Obra de Adélia Prado - um estudo sobre sua obra recente(1)



Cecília Canalle
Mestre em Educação - FEUSP
canalle@uol.com.br


1. Vida como vocação divina

"Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita:
'a vocação é um afeto'. "
(Manuscritos de Felipa, p.104.

Muitos escritores apresentam fases. Fases temáticas, fases relativas à forma, fase relativas à época. Adélia Prado, interessantemente, parece não tê-las. Sua obra é una. Sabe a que vem, em que reside sua qualidade e qual seu tema. Desde o primeiro livro, Adélia tem assinatura.

A um leitor ou crítico desatento, surgiriam frases indicando uma possível repetição. Ledo engano. Há que se discernir entre o que se apresenta em formatos estapafúrdios cheirando a plástico de cores inesperadas camuflando um conteúdo de um eu diluído, inconsistente e os temas sempre fincados nas circunstâncias cotidianas perspassados por uma ordo(2) permanente. Permanente e, esperamos, imutável uma vez que fundamento e consistência de seu trabalho ede sua experiência: “O mundo está certo! Graças a Deus dá pra continuar.”(3)

O velho está relacionado a inconsistência. O novo à revelação permanente da Verdade. Essa revelação, em Adélia Prado, se dá sempre através daquilo que ela mesmo define como sendo a única matéria da poesia: "essa vidinha besta"(4). É com ela e através dela – sempre e, nesse sentido sim, enquanto método, repetitivamente que a escritora fará metafísica. O pesquisador Gabriel Perissé define o artista como um combinador. “A arte de combinar o céu e o inferno e de fazer que vejamos entre eles um vínculo superior, inteligente – visão que nos torna lúcidos.”

Sua escrita é caracterizada pelo fluxo da consciência, unido a uma espécie de medo de chegar muito perto daquilo que o momento poético vai revelar quase à sua revelia. Quase porque o momento poético é dado divinamente como ela afirma, mas não se manifesta sem sua anuência e estilo próprio.


Direitos humanos
Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
(Oráculos de Maio, p.73.)



Assim, cinco anos sem publicar e já tendo se distanciado de seu público outras vezes(5), Adélia Prado faz confirmar aquilo que sempre declara: “Artista nenhum gera sua própria luz.”(6) , mas esse Dom é perspassado pela sua observação humana única e próprio daquele ser. A arte como revelaçao divina não é psicografia, mas é carne do poeta humano transpassada pelo chamado divino: “Qualquer língua ao final é Deus falando, por isso nos escapa tanto, só se mostra ao desfocado olhar da poesia, à sua densa névoa, quando tudo suspende-se ao juízo e apenas cintila, em vapores d’água, orvalho, vultos movendo-se em neblina. Você pressente e teme porque a beleza é viva e te olha. Chama pelo nome ao que a procura.”

A beleza é uma das faces de Deus que chamará o homem para que o revele. Rodin esclarece que “não há , na realidade, nem estilo belo, nem desenho belo, nem cor bela. Existe apenas uma única beleza, a beleza da verdade que se revela. Quando uma verdade, uma idéia profunda, ou um sentimento forte explode numa obra literária ou artística, é óbvio que o estilo, a cor e o desenho são excelentes. Mas eles só possuem essa qualidade pelo reflexo da verdade."(7)

Mitigação da pena
O céu estrelado
vale a dor do mundo.
(Oráculos..., p.119)


Nada escapa à concepção de arte como vocação. Ritmo e a precisão vocabular: cada palavra surge precisamente posta naquele desejado lugar. Algo de fazer inveja aos parnasianos, “poetas cerebrais” que ela mesma ironiza no poema "A formalística" e reafirma nos de Oráculos de Maio:

Salve Rainha O intenso brilho

(..) isto é um poema – tem ritmo, ...quero ouvir tua alma,
obedece à ordem mais alta a que mora na garganta
e parece me ignorar. como em túmulos
(Oráculos..., p.17) esperando a hora da ressurreição,...
(Oráculos..., p. 51)



A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário. (...)
(Poesia Reunida, p.376)



Mesmo assim, sendo graça e dom, o cumprimento da vocação, o reconhecimento e a resposta a um chamado contínuo são muito exigentes, principalmente, porque a alma parece tender à distração.

O poeta ficou cansado
Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
(...)
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha, (...)
(Oráculos..., p.13.)



2. Mirandum e theoria: o olhar admirado que não se impõe sobre o objeto


“Você da janela contempla, contempla, porque é um não-ver com os olhos,
folhas brilhando coroadas de gotas...”
(Manuscritos..., p.42.)



Adélia Prado é a escritora da observação. É um ser posto no mundo sentado à porta de seu quintal, sob aqueles degraus em que se costumam descascar e comer laranjas.

Desse posto de observação, olha atentamente para aquela parte do mundo que a circunstância da hora ilumina. E para nós, leitores, que só a lemos em seus claros momentos poéticos, afirmamos que Adélia sempre se maravilhará com o que vê: seja dor, seja alegria. Entendamos que a escritora mineira não é um estado poético permanente porque isso não seria humano. Mas aquilo que nós é dado ler, ou seja, a arte de que ela é instrumento, são flagrantes desse instante de lucidez denominado momento poético.

O adjetivo participial latino neutro mirandum significa admirável, aquilo, seja o lá que for, que suscita admiração. Mas esclarece o filosófo alemão Josef Pieper que tal admiraçao não é oriunda do estapafúrdio, mas de “perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não-diário”.(8)

Adélia Prado traduz, perfeitamente, esse conceito milenar na maioria de seus poemas, recuperando, para o leitor, o bom assentado sobre a simplicidade.


Mater dolorosa
(...) Uma vez fizemos piqueninque,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com douçura.
Se for só isso o céu,
está perfeito.
(Oráculos..., p.47)



É, também, Josef Pieper em seu livro Felicidade e Contemplação quem explica que o termo theoria significa “atividade intelectual puramente perceptiva, afastada de qualquer utilidade ‘desinteressada’entendendo com isto a exclusão de qualquer utilitarismo ou proveito.” E ainda “theoria e contemplatio tendem única e exclusivamene a que a realidade vista se torne clara e evidente, que se manifeste e se descubra; tendem à verdade, e nada mais.”

Sem observação, sem esse olhar livre e descompromissado, a theoria do antigos, o canal de comunicação entre a ordo imanente do objeto e o ser observado, se turva.

Oficina Na terra como no céus

O mundo é ininteligível, Nesta hora da tarde,
mas é bom. quando a casa repousa
(Oráculos..., p.69.) a obra de minhas mãos
é esta cozinha limpa.
(Oráculos..., p.101.)



3. Circunstância: onde o humano e o transcendente se encontram
“Tudo que existe conta.” (Manuscritos..., p.107.)


A circunstância
As circunstâncias são fator essencial da vida, não um fator secundário. Se o transcendente se manifesta encarnadamente, como afirma a escritora: "a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou está encarnada nas coisas."(9) então a matéria-prima da arte, porque da vida, é o cotidiano na sua circunstância mais prosaica.

Domus
Com seus olhos estáticos na cumeeira
a casa olha o homem.
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos,
de paredes sensíveis,
discernentes:
agora é amor,
agora é injúria,
punhos contra a parede,
pânico.
Comove Deus
a casa que o homem faz para morar,
Deus
que também tem os olhos
na cumeeira do mundo.
Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade.
Sofre a que parece impassível.
É viva a casa e fala.(Oráculos..., p.25.)



O importante é ressaltar que observação e circunstância são dois alicerces da poética adeliana, seu material, seu tijolo. Sem elas, dificilmente, surgiria o momento poético uma vez que, como diz a própria escritora: “Eu vejo as coisas como manifestação – até uma cadeira de plástico - ela manifesta.”(10).

Portanto a circunstância é o cruzamento do momento e do espaço precisos em que a vida acontece. A escritora se depara com a circunstância e a contempla. Essa experiência de estupor gera outra necessidade completamente humana: a busca das razões, ou seja, compreender aquilo que vê. A autora em questão reconhece aquilo que Agostinho afirmara há 1600 anos: “O tempo é um vestígio da eternidade.”(11) Esse vestígio é a força motriz de sua obra e, ousamos dizer, também de sua autora.

Adélia reconhe a eternidade à espreita dentro de qualquer aparências sua obra é a expressão de um conjunto enorme de cirucunstâncias que a convidam a reconhecer o seu destino.



A busca de razões
“Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?”
(Poesia Reunida, p.314)



Possivelmente, uma das características mais significativas e definidoras do homem esteja relacionada à contemplação como de busca de sentido. Platão chega a afirmar em Crátilo, ou "Sobre a justeza dos nomes", que “o nome anthropos significa que, ao contrário dos outros animais que não examinam o que vêem, nem o analisam, nem contemplam, o homem, ao mesmo tempo que vê - pois é isso, justamente, que quer dizer opôpe - contempla e analisa o que viu. Por isso, dentre todos os animais é o homem o único justamente denominado Anthropos, ou seja, anathrôn ha ópôpe, o que contempla o que vê”.(12)

O segundo passo, portanto, da contemplação será o “analisar”, o reconhecer, ou seja, conhecer novamente, agora, extraindo do que vê algo que lhe está além. Adélia Prado reconhece a ratio e a ordo no mundo descritas por Tomás de Aquino. Ou seja, a inteligência criadora nas coisas. Dessa forma, necessariamente, o corpus adeliano afirma um mundo que não é caos, mas ordem e sentido, um mundo cujas coisas estão “marcadas por um caráter verbal, não sendo meras realidades ou significações privadas de sentido num espaço mudo” como atesta Romano Guardini.(13) Ao fazer a experiência de reconhecimento do sentido no mundo, o eu-lírico não suportará a aridez de afeto ao observador que é o mundo caos e contingência.

No poema, "Estação de maio", a escritora retoma um de seus mais freqüentes temas: a “ausência de poesia” e a consequente súplica para que Deus lhe tire dessa aridez: não perceber a conexão entre realidade circundante e transcendência.

Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.
(Poesia Reunida, p.199.)



Ausência de poesia
Aquele que me fez me tirou da abastança,
Há quarenta dias me oprime do deserto. (...)
Ó Deus de Bilac, Abrãao e Jacó,
Esta hora cruel nào passa?
Me tira desta areia, ó Espírito,
Redime estas palavras do seu pó.
(Poesia Reunida, p.189.)



Nem um verso em dezembro
Nem um verso em dezembro,
Eu que para isso nasci e vim ao mundo. (...)
(Poesia Reunida, p.157.)



Estação de maio
A salvação opera nos abismos.
Na estaçào indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.
(Oráculos..., p.127.)



A dor que atinge o eu-lírico e o torna um suplicante por sentido advém de uma constatação: percebia algo que, ao perder, tornou tudo árido. Além dessa súplica, no reconhecimento da miserabilidade humana, esse conjunto de poemas provoca o leitor na busca das razões últimas daquilo que sua vida intercepta: o desiderium sciendi.

Teodoro quis saber. Disse que não posso esquecer da revoada. Será que um dia saberemos a razã das coisas? Por que um bando de passarinhos resolve, sem ser por comida, defesa do ninho, ameaça extera, sobrevoar um lote vago que só tem capim alto e alicerce abandonado, produzindo felicidade em nós? (Manuscritos..., p.51.)

Bulha
(...) Como é possível que a nós, mortais, se aumente o brilho nos olhos
porque o vestido é azul e tem um laço?
(Poesia Reunida, p.116.)



Aqui, estamos nos referindo ao conceito de quidditas. “A natureza da razão (que é a de compreender a existência), define o teólogo italiano Luigi Giussani, obriga por coerência, a razão mesma a admitir a existência de um incompreensível, isto é, a existência de Algo (de um quid) constitucionalmente além de toda a possibilidade de compreensão e de medida.”(14)

O eu-lírico adeliano afirmará peremptoriamente, a cada frase, diante de todo o tipo de desconcerto de mundo: sim, o mundo é ordem, é inteligência geradora contínua.

Se há ordem no mundo?
“Que nada mude, Senhor”(15)

4. O tema da rotina: a expressão da ordem do mundo
Mural
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em Ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela nào sabe que sabe,
a rotina perfeita é Dues:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvores a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
(Oráculos..., p.39.)



Esta escritora de versos aparentemente pacatos e piedosos estraçalha, com meia dúzia de versos, a sociedade moderna. Faz uso de certas palavras como se elas não fossem inimigas atrozes deste tempo. Observemos, por exemplo, “a rotina perfeita é Deus”. Adélia Prado coloca lado a lado: rotina, perfeita, Deus. Ora, execramos a rotina. Todas as propagandas e filmes são um convite incontrolável a que nossas vidas- sempre vistas como algo insosso - ganhem sabor pelo Hollywood de nossos cigarros e que, por fim, gozemos de nossa merecida liberdade seguindo o promissor horizonte da ponta de nosso próprio nariz.

A sociedade moderna identifica no cheiro do plástico a possibilidade de ser feliz novamente. Não encontrando sentido nas atividades simples e repetitivas do cotidiano, o homem - aquele ser da natureza que busca sentido permanentemente - vê na substituição dos elementos que já perderam seu fator de inusitado, de inesperado a possibilidade de sentir-se feliz novamente. Por isso a expressão “rotina perfeita” apresenta-se como um paradoxo, só quem tem a chave de seu sentido pode decifrá-lo.

Em um mundo conturbado e tecnológico caracterizado pelo clamor por melhores condições de toda a espécie, o que faz com que o eu-lírico de Oráculos de Maio seja razoável ao afirmar: “que nada mude, Senhor.”? Estamos diante de mais um dos aparentes paradoxos adelianos, daquilo que define sua obra, seu fio condutor: o mundo é ordo, escondida, maquiada, misteriosa; mas ordo.

Existe uma ordem no mundo? Adélia Prado responderá em cada linha de toda sua obra: Sim, há ordem, há sentido, há procedência no mundo mesmo diante da dor. Aqui, está grande parte de sua força poética expressa com clareza constrangedora em Fibrilações: “Tanto faz funeral ou festim/tudo é desejo/ o que percute em mim”(16). O sentido não se origina da oscilação entre estabilidade e quebra de rotina, não se dá pela possibilidade de se ter um mundo pessoal organizado social e financeiramente com momentos de aventura rompendo o cotidiano. Para esta escritora de raízes filosóficas profundas, a felicidade tem sua existência independente de “condições climáticas” favoráveis. Ela reside em um mundo sustentado por um Deus criador que o sustenta a cada instante.

Por isso e portanto: “que nada mude, Senhor.”

5. Dois exemplos paradigmáticos
Pelicano
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.
(Poesia Reunida, p.359)



Neopelicano
Um dia,
como vira um navio
pra nunca mais esquecê-lo,
vi um leão de perto.
Repousava,
a anima bruta indivídua.
O cheiro forte, não doce,
cheiro de sangue a vinagre.
Exultava, pois não tinha palavras
e não tê-las prolongava-me o gozo:
é um leão!
Só um deus é assim, pensei.
Sobrepunha-se a ele
um outro animal
radiando na aura
de sua cor maturada.
Tem piedade de mim, rezei-lhe
premida de gratidão
por ser de novo pequena.
Durou um minuto a sobre-humana fé.
Falo com tremor:
eu não vi o leão,
eu vi o Senhor!
(Oráculos..., p.139.)



Algumas estruturas são constantes em Adélia Prado.

A associação de diversos aspectos aparentemente díspares, parecendo uma sucessão de idéias jogadas;
A freqüente divisão do poema em duas partes e
O salto final no qual o transcendente explode, se revela e se oferece dentro do “varejão dos dias”.
"Pelicano" e "Neopelicano" expressam de maneira exemplar a obra adeliana: forma e conteúdo amalgamados. Não somente porque os aspectos mais característicos de seu estilo aí se concentram, mas também porque a sua maneira de observar o mundo e de juntar as pedras desse quebra-cabeças decodificando-lhe o signficado aé se apresentam. Nesses poemas, de modo particular, o transcendente toca a realidade e – sempre através dela , com ela, - grita a sua existência. A consistência, aquilo que a faz existir continuamente, que permite que a realidade continue existindo, seja produzida é identificada e revelada nesses textos.

O bom disso é que não se tratam de duas realidades díspares: navio e Deus, leão e o Senhor. Navio e leão, como já nos esclarecia Santo Tomás há sete séculos, participam do Criador(17). Não são o fogo, mas transmitem o seu calor por isso é possível identificar a ordem no mundo, por isso é possível depreender-lhe o sentido, por isso é possível cumprir uma vocação e experimentar a intensidade da vida na rotina.

Ao término da leitura de Oráculos de maio e Manuscritos de Felipa constata-se que a escritora mineira não perdeu o eixo de onde brota a força dessa obra. E mais que seu desejo fez-se livro:

Sonhava escrever um dia um livro maravilhoso, um livro como os Salmos,

os escritos de Qûmram, uma coisa que lida provocasse esta exclamação:

Existe Deus! (Cacos para um Vitral, p.75)


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(1)Manuscritos de Felipa e Oráculos de Maio, São Paulo, Siciliano, 1999.

(2) Abordaremos esse tema no item "Rotina: a ordem do mundo".

(3) Encontro com escritores: “Minas além das Gerais, Rio de Janeiro,”03 de junho de 1995.

(4) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(5) Entre Componentes da Banda e O homem da Mão Seca passaram-se três anos.

(6) Cacos para um Vitral, p. 123.

(7) RODIN, Auguste. A arte. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 73., cit. por Gabriel Perissé. "Beleza", Mirandum 5 neste mesmo site.

(8) Que é filosofar? Que é acadêmico?, São Paulo, EPU, p. 27.

(9) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(10) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(11) De Genesi,lib. Imperf. XII, 38

(12) In CANALLE, Cecília. Fundamentos Filsóficos da Poética de Adélia Prado, p.59.

(13) In CANALLE, Cecília. Fundamentos Filsóficos da Poética de Adélia Prado, p.59.

(14) O Senso Religioso, p.169.

(15) Oráculos..., p.39.

(16) Poesia Reunida, p.310.

(17) “Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a obtenção de qualquer bem criado é certa semelhança e participação da felicidade definitiva.” SÃO TOMáS DE AQUINO cit. por LAUAND. In. Linguagem e Ética, p.15.