quarta-feira, março 14, 2007

Adélia Prado

Inspiração Divina e Inteligência Humana na Obra de Adélia Prado - um estudo sobre sua obra recente(1)



Cecília Canalle
Mestre em Educação - FEUSP
canalle@uol.com.br


1. Vida como vocação divina

"Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita:
'a vocação é um afeto'. "
(Manuscritos de Felipa, p.104.

Muitos escritores apresentam fases. Fases temáticas, fases relativas à forma, fase relativas à época. Adélia Prado, interessantemente, parece não tê-las. Sua obra é una. Sabe a que vem, em que reside sua qualidade e qual seu tema. Desde o primeiro livro, Adélia tem assinatura.

A um leitor ou crítico desatento, surgiriam frases indicando uma possível repetição. Ledo engano. Há que se discernir entre o que se apresenta em formatos estapafúrdios cheirando a plástico de cores inesperadas camuflando um conteúdo de um eu diluído, inconsistente e os temas sempre fincados nas circunstâncias cotidianas perspassados por uma ordo(2) permanente. Permanente e, esperamos, imutável uma vez que fundamento e consistência de seu trabalho ede sua experiência: “O mundo está certo! Graças a Deus dá pra continuar.”(3)

O velho está relacionado a inconsistência. O novo à revelação permanente da Verdade. Essa revelação, em Adélia Prado, se dá sempre através daquilo que ela mesmo define como sendo a única matéria da poesia: "essa vidinha besta"(4). É com ela e através dela – sempre e, nesse sentido sim, enquanto método, repetitivamente que a escritora fará metafísica. O pesquisador Gabriel Perissé define o artista como um combinador. “A arte de combinar o céu e o inferno e de fazer que vejamos entre eles um vínculo superior, inteligente – visão que nos torna lúcidos.”

Sua escrita é caracterizada pelo fluxo da consciência, unido a uma espécie de medo de chegar muito perto daquilo que o momento poético vai revelar quase à sua revelia. Quase porque o momento poético é dado divinamente como ela afirma, mas não se manifesta sem sua anuência e estilo próprio.


Direitos humanos
Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
(Oráculos de Maio, p.73.)



Assim, cinco anos sem publicar e já tendo se distanciado de seu público outras vezes(5), Adélia Prado faz confirmar aquilo que sempre declara: “Artista nenhum gera sua própria luz.”(6) , mas esse Dom é perspassado pela sua observação humana única e próprio daquele ser. A arte como revelaçao divina não é psicografia, mas é carne do poeta humano transpassada pelo chamado divino: “Qualquer língua ao final é Deus falando, por isso nos escapa tanto, só se mostra ao desfocado olhar da poesia, à sua densa névoa, quando tudo suspende-se ao juízo e apenas cintila, em vapores d’água, orvalho, vultos movendo-se em neblina. Você pressente e teme porque a beleza é viva e te olha. Chama pelo nome ao que a procura.”

A beleza é uma das faces de Deus que chamará o homem para que o revele. Rodin esclarece que “não há , na realidade, nem estilo belo, nem desenho belo, nem cor bela. Existe apenas uma única beleza, a beleza da verdade que se revela. Quando uma verdade, uma idéia profunda, ou um sentimento forte explode numa obra literária ou artística, é óbvio que o estilo, a cor e o desenho são excelentes. Mas eles só possuem essa qualidade pelo reflexo da verdade."(7)

Mitigação da pena
O céu estrelado
vale a dor do mundo.
(Oráculos..., p.119)


Nada escapa à concepção de arte como vocação. Ritmo e a precisão vocabular: cada palavra surge precisamente posta naquele desejado lugar. Algo de fazer inveja aos parnasianos, “poetas cerebrais” que ela mesma ironiza no poema "A formalística" e reafirma nos de Oráculos de Maio:

Salve Rainha O intenso brilho

(..) isto é um poema – tem ritmo, ...quero ouvir tua alma,
obedece à ordem mais alta a que mora na garganta
e parece me ignorar. como em túmulos
(Oráculos..., p.17) esperando a hora da ressurreição,...
(Oráculos..., p. 51)



A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário. (...)
(Poesia Reunida, p.376)



Mesmo assim, sendo graça e dom, o cumprimento da vocação, o reconhecimento e a resposta a um chamado contínuo são muito exigentes, principalmente, porque a alma parece tender à distração.

O poeta ficou cansado
Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
(...)
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha, (...)
(Oráculos..., p.13.)



2. Mirandum e theoria: o olhar admirado que não se impõe sobre o objeto


“Você da janela contempla, contempla, porque é um não-ver com os olhos,
folhas brilhando coroadas de gotas...”
(Manuscritos..., p.42.)



Adélia Prado é a escritora da observação. É um ser posto no mundo sentado à porta de seu quintal, sob aqueles degraus em que se costumam descascar e comer laranjas.

Desse posto de observação, olha atentamente para aquela parte do mundo que a circunstância da hora ilumina. E para nós, leitores, que só a lemos em seus claros momentos poéticos, afirmamos que Adélia sempre se maravilhará com o que vê: seja dor, seja alegria. Entendamos que a escritora mineira não é um estado poético permanente porque isso não seria humano. Mas aquilo que nós é dado ler, ou seja, a arte de que ela é instrumento, são flagrantes desse instante de lucidez denominado momento poético.

O adjetivo participial latino neutro mirandum significa admirável, aquilo, seja o lá que for, que suscita admiração. Mas esclarece o filosófo alemão Josef Pieper que tal admiraçao não é oriunda do estapafúrdio, mas de “perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não-diário”.(8)

Adélia Prado traduz, perfeitamente, esse conceito milenar na maioria de seus poemas, recuperando, para o leitor, o bom assentado sobre a simplicidade.


Mater dolorosa
(...) Uma vez fizemos piqueninque,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com douçura.
Se for só isso o céu,
está perfeito.
(Oráculos..., p.47)



É, também, Josef Pieper em seu livro Felicidade e Contemplação quem explica que o termo theoria significa “atividade intelectual puramente perceptiva, afastada de qualquer utilidade ‘desinteressada’entendendo com isto a exclusão de qualquer utilitarismo ou proveito.” E ainda “theoria e contemplatio tendem única e exclusivamene a que a realidade vista se torne clara e evidente, que se manifeste e se descubra; tendem à verdade, e nada mais.”

Sem observação, sem esse olhar livre e descompromissado, a theoria do antigos, o canal de comunicação entre a ordo imanente do objeto e o ser observado, se turva.

Oficina Na terra como no céus

O mundo é ininteligível, Nesta hora da tarde,
mas é bom. quando a casa repousa
(Oráculos..., p.69.) a obra de minhas mãos
é esta cozinha limpa.
(Oráculos..., p.101.)



3. Circunstância: onde o humano e o transcendente se encontram
“Tudo que existe conta.” (Manuscritos..., p.107.)


A circunstância
As circunstâncias são fator essencial da vida, não um fator secundário. Se o transcendente se manifesta encarnadamente, como afirma a escritora: "a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou está encarnada nas coisas."(9) então a matéria-prima da arte, porque da vida, é o cotidiano na sua circunstância mais prosaica.

Domus
Com seus olhos estáticos na cumeeira
a casa olha o homem.
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos,
de paredes sensíveis,
discernentes:
agora é amor,
agora é injúria,
punhos contra a parede,
pânico.
Comove Deus
a casa que o homem faz para morar,
Deus
que também tem os olhos
na cumeeira do mundo.
Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade.
Sofre a que parece impassível.
É viva a casa e fala.(Oráculos..., p.25.)



O importante é ressaltar que observação e circunstância são dois alicerces da poética adeliana, seu material, seu tijolo. Sem elas, dificilmente, surgiria o momento poético uma vez que, como diz a própria escritora: “Eu vejo as coisas como manifestação – até uma cadeira de plástico - ela manifesta.”(10).

Portanto a circunstância é o cruzamento do momento e do espaço precisos em que a vida acontece. A escritora se depara com a circunstância e a contempla. Essa experiência de estupor gera outra necessidade completamente humana: a busca das razões, ou seja, compreender aquilo que vê. A autora em questão reconhece aquilo que Agostinho afirmara há 1600 anos: “O tempo é um vestígio da eternidade.”(11) Esse vestígio é a força motriz de sua obra e, ousamos dizer, também de sua autora.

Adélia reconhe a eternidade à espreita dentro de qualquer aparências sua obra é a expressão de um conjunto enorme de cirucunstâncias que a convidam a reconhecer o seu destino.



A busca de razões
“Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?”
(Poesia Reunida, p.314)



Possivelmente, uma das características mais significativas e definidoras do homem esteja relacionada à contemplação como de busca de sentido. Platão chega a afirmar em Crátilo, ou "Sobre a justeza dos nomes", que “o nome anthropos significa que, ao contrário dos outros animais que não examinam o que vêem, nem o analisam, nem contemplam, o homem, ao mesmo tempo que vê - pois é isso, justamente, que quer dizer opôpe - contempla e analisa o que viu. Por isso, dentre todos os animais é o homem o único justamente denominado Anthropos, ou seja, anathrôn ha ópôpe, o que contempla o que vê”.(12)

O segundo passo, portanto, da contemplação será o “analisar”, o reconhecer, ou seja, conhecer novamente, agora, extraindo do que vê algo que lhe está além. Adélia Prado reconhece a ratio e a ordo no mundo descritas por Tomás de Aquino. Ou seja, a inteligência criadora nas coisas. Dessa forma, necessariamente, o corpus adeliano afirma um mundo que não é caos, mas ordem e sentido, um mundo cujas coisas estão “marcadas por um caráter verbal, não sendo meras realidades ou significações privadas de sentido num espaço mudo” como atesta Romano Guardini.(13) Ao fazer a experiência de reconhecimento do sentido no mundo, o eu-lírico não suportará a aridez de afeto ao observador que é o mundo caos e contingência.

No poema, "Estação de maio", a escritora retoma um de seus mais freqüentes temas: a “ausência de poesia” e a consequente súplica para que Deus lhe tire dessa aridez: não perceber a conexão entre realidade circundante e transcendência.

Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.
(Poesia Reunida, p.199.)



Ausência de poesia
Aquele que me fez me tirou da abastança,
Há quarenta dias me oprime do deserto. (...)
Ó Deus de Bilac, Abrãao e Jacó,
Esta hora cruel nào passa?
Me tira desta areia, ó Espírito,
Redime estas palavras do seu pó.
(Poesia Reunida, p.189.)



Nem um verso em dezembro
Nem um verso em dezembro,
Eu que para isso nasci e vim ao mundo. (...)
(Poesia Reunida, p.157.)



Estação de maio
A salvação opera nos abismos.
Na estaçào indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.
(Oráculos..., p.127.)



A dor que atinge o eu-lírico e o torna um suplicante por sentido advém de uma constatação: percebia algo que, ao perder, tornou tudo árido. Além dessa súplica, no reconhecimento da miserabilidade humana, esse conjunto de poemas provoca o leitor na busca das razões últimas daquilo que sua vida intercepta: o desiderium sciendi.

Teodoro quis saber. Disse que não posso esquecer da revoada. Será que um dia saberemos a razã das coisas? Por que um bando de passarinhos resolve, sem ser por comida, defesa do ninho, ameaça extera, sobrevoar um lote vago que só tem capim alto e alicerce abandonado, produzindo felicidade em nós? (Manuscritos..., p.51.)

Bulha
(...) Como é possível que a nós, mortais, se aumente o brilho nos olhos
porque o vestido é azul e tem um laço?
(Poesia Reunida, p.116.)



Aqui, estamos nos referindo ao conceito de quidditas. “A natureza da razão (que é a de compreender a existência), define o teólogo italiano Luigi Giussani, obriga por coerência, a razão mesma a admitir a existência de um incompreensível, isto é, a existência de Algo (de um quid) constitucionalmente além de toda a possibilidade de compreensão e de medida.”(14)

O eu-lírico adeliano afirmará peremptoriamente, a cada frase, diante de todo o tipo de desconcerto de mundo: sim, o mundo é ordem, é inteligência geradora contínua.

Se há ordem no mundo?
“Que nada mude, Senhor”(15)

4. O tema da rotina: a expressão da ordem do mundo
Mural
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em Ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela nào sabe que sabe,
a rotina perfeita é Dues:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvores a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
(Oráculos..., p.39.)



Esta escritora de versos aparentemente pacatos e piedosos estraçalha, com meia dúzia de versos, a sociedade moderna. Faz uso de certas palavras como se elas não fossem inimigas atrozes deste tempo. Observemos, por exemplo, “a rotina perfeita é Deus”. Adélia Prado coloca lado a lado: rotina, perfeita, Deus. Ora, execramos a rotina. Todas as propagandas e filmes são um convite incontrolável a que nossas vidas- sempre vistas como algo insosso - ganhem sabor pelo Hollywood de nossos cigarros e que, por fim, gozemos de nossa merecida liberdade seguindo o promissor horizonte da ponta de nosso próprio nariz.

A sociedade moderna identifica no cheiro do plástico a possibilidade de ser feliz novamente. Não encontrando sentido nas atividades simples e repetitivas do cotidiano, o homem - aquele ser da natureza que busca sentido permanentemente - vê na substituição dos elementos que já perderam seu fator de inusitado, de inesperado a possibilidade de sentir-se feliz novamente. Por isso a expressão “rotina perfeita” apresenta-se como um paradoxo, só quem tem a chave de seu sentido pode decifrá-lo.

Em um mundo conturbado e tecnológico caracterizado pelo clamor por melhores condições de toda a espécie, o que faz com que o eu-lírico de Oráculos de Maio seja razoável ao afirmar: “que nada mude, Senhor.”? Estamos diante de mais um dos aparentes paradoxos adelianos, daquilo que define sua obra, seu fio condutor: o mundo é ordo, escondida, maquiada, misteriosa; mas ordo.

Existe uma ordem no mundo? Adélia Prado responderá em cada linha de toda sua obra: Sim, há ordem, há sentido, há procedência no mundo mesmo diante da dor. Aqui, está grande parte de sua força poética expressa com clareza constrangedora em Fibrilações: “Tanto faz funeral ou festim/tudo é desejo/ o que percute em mim”(16). O sentido não se origina da oscilação entre estabilidade e quebra de rotina, não se dá pela possibilidade de se ter um mundo pessoal organizado social e financeiramente com momentos de aventura rompendo o cotidiano. Para esta escritora de raízes filosóficas profundas, a felicidade tem sua existência independente de “condições climáticas” favoráveis. Ela reside em um mundo sustentado por um Deus criador que o sustenta a cada instante.

Por isso e portanto: “que nada mude, Senhor.”

5. Dois exemplos paradigmáticos
Pelicano
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.
(Poesia Reunida, p.359)



Neopelicano
Um dia,
como vira um navio
pra nunca mais esquecê-lo,
vi um leão de perto.
Repousava,
a anima bruta indivídua.
O cheiro forte, não doce,
cheiro de sangue a vinagre.
Exultava, pois não tinha palavras
e não tê-las prolongava-me o gozo:
é um leão!
Só um deus é assim, pensei.
Sobrepunha-se a ele
um outro animal
radiando na aura
de sua cor maturada.
Tem piedade de mim, rezei-lhe
premida de gratidão
por ser de novo pequena.
Durou um minuto a sobre-humana fé.
Falo com tremor:
eu não vi o leão,
eu vi o Senhor!
(Oráculos..., p.139.)



Algumas estruturas são constantes em Adélia Prado.

A associação de diversos aspectos aparentemente díspares, parecendo uma sucessão de idéias jogadas;
A freqüente divisão do poema em duas partes e
O salto final no qual o transcendente explode, se revela e se oferece dentro do “varejão dos dias”.
"Pelicano" e "Neopelicano" expressam de maneira exemplar a obra adeliana: forma e conteúdo amalgamados. Não somente porque os aspectos mais característicos de seu estilo aí se concentram, mas também porque a sua maneira de observar o mundo e de juntar as pedras desse quebra-cabeças decodificando-lhe o signficado aé se apresentam. Nesses poemas, de modo particular, o transcendente toca a realidade e – sempre através dela , com ela, - grita a sua existência. A consistência, aquilo que a faz existir continuamente, que permite que a realidade continue existindo, seja produzida é identificada e revelada nesses textos.

O bom disso é que não se tratam de duas realidades díspares: navio e Deus, leão e o Senhor. Navio e leão, como já nos esclarecia Santo Tomás há sete séculos, participam do Criador(17). Não são o fogo, mas transmitem o seu calor por isso é possível identificar a ordem no mundo, por isso é possível depreender-lhe o sentido, por isso é possível cumprir uma vocação e experimentar a intensidade da vida na rotina.

Ao término da leitura de Oráculos de maio e Manuscritos de Felipa constata-se que a escritora mineira não perdeu o eixo de onde brota a força dessa obra. E mais que seu desejo fez-se livro:

Sonhava escrever um dia um livro maravilhoso, um livro como os Salmos,

os escritos de Qûmram, uma coisa que lida provocasse esta exclamação:

Existe Deus! (Cacos para um Vitral, p.75)


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(1)Manuscritos de Felipa e Oráculos de Maio, São Paulo, Siciliano, 1999.

(2) Abordaremos esse tema no item "Rotina: a ordem do mundo".

(3) Encontro com escritores: “Minas além das Gerais, Rio de Janeiro,”03 de junho de 1995.

(4) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(5) Entre Componentes da Banda e O homem da Mão Seca passaram-se três anos.

(6) Cacos para um Vitral, p. 123.

(7) RODIN, Auguste. A arte. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 73., cit. por Gabriel Perissé. "Beleza", Mirandum 5 neste mesmo site.

(8) Que é filosofar? Que é acadêmico?, São Paulo, EPU, p. 27.

(9) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(10) Entrevista concedida por Adélia Prado ao Dr Luiz Jean Lauand em 05/11/93, São Paulo.

(11) De Genesi,lib. Imperf. XII, 38

(12) In CANALLE, Cecília. Fundamentos Filsóficos da Poética de Adélia Prado, p.59.

(13) In CANALLE, Cecília. Fundamentos Filsóficos da Poética de Adélia Prado, p.59.

(14) O Senso Religioso, p.169.

(15) Oráculos..., p.39.

(16) Poesia Reunida, p.310.

(17) “Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a obtenção de qualquer bem criado é certa semelhança e participação da felicidade definitiva.” SÃO TOMáS DE AQUINO cit. por LAUAND. In. Linguagem e Ética, p.15.

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