domingo, dezembro 25, 2005
Feio e Modernidade em Portugal
Filipe Calheiros
O que vão ver/ler é do mundo "inútil", "supérfluo", (algo nefelibata), das Artes. É pura contemplação espiritual sem fim pragmático ou uso oportuno para além duma sublime contemplação edificante.
Se apreciam o canto "leviano" da cigarra divertindo e amenizando o duro labor "sem alma", cinzento, da formiga das fábulas, leiam o que se segue, pois é desse "nada que é tudo" que trata o presente texto.
É "sobre" a grande Arte que trata. Mais concretamente duma das suas disciplinas - a das artes plásticas dos tempos mais recentes -, nossa especialidade de investigação. É sobre Arte (dita) Moderna, a arte da nossa contemporaneidade, da "modernidade última", que iremos nomear (com alguma provocação teórica) com a categoria estética de "Feio", de Belo-feio, que iremos discorrer.
É que nas artes, nas mais diversas disciplinas, também nas artes plásticas, já foi o tempo em que se comprazia (e perseguia) o Belo antigo, a Beleza formosa, bonita, solar, luminosa, serena, harmónica - um Belo alegadamente intemporal, perene, imutável, estável (estático), absoluto e transcendente - o vetusto e (até há pouco) persistente Belo-bonito, canónico, clássico, convencional.
Esses valores estéticos, subsidiários e conformadores do Belo secular, tradicional, não sobreviveram ao dealbar do século XX, ao fim do paradigma autoritário e intolerante, dualista e conservador, censor e excluidor, do platonismo estético; ao declínio e termo fatal do classicismo estético que demorara a finar-se, triunfante e hegemónico que foi desde o quatrocento renascentista, a "nova Grécia clássica" do século XVI. Aqueles valores não sobreviveram ás rupturas violentas e intempestivas das vanguardas artísticas emergentes, apocalípticas, mas também, em última instância, à velocidade da técnica, à constante mudança nos modos, nos comportamentos, nas ideias, nos ideais, nas crenças, nas mentalidades; à permanente transformação operada na vida dos tempos modernos, e mesmo (e, sobretudo) à crueldade brutal da mais recente idade trágica que é o novecentismo. O "Feio" tornou-se uma realidade evidente, significativa (e omnipresente) no universo estético da modernidade, no peculiar discurso da contemporaneidade mais recente.
O processo estético traduz, agora, de maneira mais fiel o devir do homem e da sociedade, nas múltiplas e simultâneas mutações operadas, feitas em sucessivas rupturas, inovações, curto-circuitos, saltos, hiatos, desvios, mudanças, ... repentinas diferenças, intempestivos "outros", e, claro, sequelas, numa continuidade paradoxalmente descontínua, que sucede à continuidade linear da arte dos amigos.
"O Feio e a Modernidade" é então o título que encontrámos, mais explícito e objectivo, para nomear o tema substantivo desta conferência que aborda, a partir das perspectivas estética e histórica, a controversa realidade axiológica da Arte Contemporânea, e muito particularmente do seu panorama nas artes plásticas, dando a antever, sumariamente, a substância teórica da investigação de âmbito académico que temos em curso.
1ª pergunta óbvia ... fruto de (natural) estranhamento:
Porquê juntar aqueles dois vocábulos, e seus respectivos conceitos em um sintagma de identificação? Desdobrando:
O que tem a ver a categoria estética do "Feio" (entenda-se o feio-estético, o feio-artístico ou o Belo-feio, se se quiser) com a noção cultural de Modernidade?
Identificação estranha, insólita e até temerária, parecerá numa leitura apressada, mas também num cepticismo prudente.
Pois é da pertinência dessa identificação-diríamos ontológica-que trata o esforço teórico daquela investigação, apoiado que fica na evidência demonstrada do advento dos múltiplos, diversificados, simultâneos e constantes fenómenos emblemáticos da arte dos nossos dias, alargados ao nosso inteiro século, e conformando a emergência intempestiva dum paradigma estético novo, desconcertante, que inaugura o predomínio de uma nova categoria estética - o "Feio", precisamente!
É o "Feio" que comanda os discursos estéticos da modernidade, conformando a noção de idade contemporânea como um pathos singular, claramente antagónico à continuidade regular e (alegadamente) imutável do processo artístico secular, numa dinâmica afirmação de um devir feito de descontinuidades dinâmicas, dialécticas.
E o "Feio" é a realidade mais significativa das artes mais recentes, o conceito hegemónico da mais recente axiologia estética, patente tanto em leituras da aparência, como ao nível da essência.
O "Feio" em sentido subjectivo manifesta-se notoriamente na aversão genuína (que o atavismo nomeia também como ameaça), exteriorizada na reacção de "estranhamento" que provoca sempre, invariavelmente, o novo, na larga, atávica, conservadora e reaccionária - comunidade de fruidores leigos e recuados (convencionais e tradicionalistas ... neofóbicos!) da arte.
E a pejoração (o "feio" do novo, do desconhecido, do salto temerário no escuro, da procura arrojada do mais longínquo e inóspito, da vertigem do abismo...) sai mesmo das mentalidades (em princípio mais próximas das vanguardas) dos críticos (que deveriam ser) esclarecidos e despreconceituosos. Os "nomes de guerra", assumidos galharda e ironicamente, com picardia, pelos artistas vanguardistas, foram inicialmente um sinal inequívoco de choque e consequente rejeição: "impressionistas", "fauves" (feras), entanted kunst ("arte degenerada"), "arte do lixo" (a pop-arte), "arte estuporada" (a bad-paiting, "má pintura") e muitos outros, foram sempre os anátemas lançados para excluir, para nomear "fealdade", e depois, só muito depois, transformados em realidade tolerada, mais tarde ainda assimilada, e até consagrada.
É ainda, e sobretudo, o "Feio", que comanda o sentido objectivo de mudança da realidade essencial da arte dos nossos dias, da mutação estrutural, traduzida no ocaso das estéticas de obediência platónica, e dos seus imperativos obsoletos e decadentes; da decadência fatal das suas disciplina autoritária, censura excluidora, dualismo enganador. O "Feio" aparece como termo fatal da exaltação obrigatória e exclusiva da tradição e dos modelos do passado, como fim inevitável do escapismo idealista efabulador, ilusório e evasivo, esquecedor da realidade do Mundo e do Homem (e das suas circunstâncias), ao apregoar os enganadores arquétipos da transcendência.
Trata-se então do triunfo dum Belo paradoxal - o "Feio" estético, o Belo-feio, - situado nas antípodas do Belo secular, convencional, regular, o Belo-bonito, que se queria único e eterno...
Tudo isso ruiu fatalmente!
A nova categoria estética dominante é o "Feio" - esse Belo paradoxal, desdobrado nos valores predominantes dos discursos artísticos modernos: o patético, o trágico, o dramático, o prosaico, o sensual, o irónico, o mordaz, o sarcástico, o burlesco, o rude, o bizarro, o grotesto, o pícaro, o jocoso, o satírico, o paródico, o cómico, o lúdico, o exótico, o insólito, o fantástico... todos eles valores contrários do formoso, do gracioso, do sereno, do solene, do harmonioso... a que estávamos, há já longo tempo, habituados.
O "Feio" é a força anímica enérgica que move as vanguardas artísticas. É o dionisíaco perturbador, a expontânea exaltação dos instintos, a voz aberta das pulsões primeiras (primárias)... "do princípio do prazer", actuando na subversão do disciplinador "princípio da realidade"; do Eros triunfante (ainda que episodicamente) sobre a ameaça (derradeira) de Thanatos. O "Feio" é, sobretudo, a procura dum registo verdadeiro e fidedigno da crueldade do mundo real, na comunhão íntima e inseparável da arte com a vida. A vida exprime-se na arte por uma verdade fiel, ainda que transfigurada. A arte é o retrato, mentiroso da verdade, verdadeiro na sua mentira, da exaltação triunfante da Vida Livre. Do mosaico das suas múltiplas e contraditórias faces, tanto de júbilo como de desespero, tanto de entusiasmo (de encantamento) como de desilusão (de desencanto). Quer-se então a verdade na arte, e a verdade é cruel! Por isso aparece de modo assustadoramente cruel a arte moderna. Essa crueldade do "Feio" da arte moderna é talvez nomeável com mais propriedade como "Furor Poético" (Horácio) ou como "Sublime" (Schiller).
Procura-se o fiel e inteiro retrato e testemunho do homem no mundo, retrato e testemunho plurais e em devir. Os "tempos modernos" não permitem a imutabilidade dos modelos artísticos. A velocidade e a crueldade brutal da moderna idade trágica, que é o Século XX, não se compadece com os obsoletos modelos clássicos herdados do platonismo intemporal, e com a sua obediência longa. Estilos que duram séculos no passado, são substituídos, nos últimos tempos, por movimentos que duram uma década. "Feldades" que sucedem a outras "fealdades". Velozmente...
O Feio dominando múltiplas "aparições", diversificados fenómenos; retratos vivos dum real feito de sombras e de medos!
Como diziam os vanguardistas dos idos da 1ª Grande Guerra: "Como podemos querer uma arte e uma beleza serenas, se à nossa volta vemos apenas a mais crua fealdade, o lado mais negro dos homens?"
A fealdade é esse pathos peculiar nomeável como Modernidade Última. Um sentido moderno, que já não é datável pela idade homónima da histografia geral, mas que se conforma somente com os mais recentes tempos, com o século XX.
A modernidade é vista pelos historiadores da arte e pelos críticos da arte em dicotómico confronto com a antiguidade: os Modernos versus os Antigos (os artistas até ao século XX). O vocábulo modernidade (não confundir com moderno) é de autoria atribuída ao poeta Charles Baudelaire (1849) e nomeia o paradigma novo que emerge na Segunda metade do século XIX e se torna hegemónico no século XX.
A Modernidade Última identifica toda a criação artística e estética controversa, polémica e inovadora, posterior às grandes rupturas que acompanharam a mudança do século passado para este nosso inteiro século que agora acaba, A Modernidade Última identifica o mais recente estádio de desenvolvimento do processo da Arte - o de uma maturidade paradoxal - que se libertou definitivamente da tutela académica (platónica) que demorava em finar-se, e se rege agora por um paradigma estético "outro", em tudo contrário à noção vetusta de Belo e de Beleza - intemporais, perenes, imutáveis, totais, únicos, absolutos, transcendentes... e afastados do homem, considerado espectro grosseiro de Deus - que tais eram os atributos imperativos do platonismo estético.
É, agora, o triunfo do diverso, do novo, do estranho, do não-familiar. Fenómenos que se identificam com a "fealdade" artística como valor dominante. O Belo-feio comandando discursos estéticos, práticas artísticas. São as rupturas constantes no seio da cultura velha, é o assalto da "juventude do olhar" aos velhos templos da "Kultura", num ritual iconoclasta de uma beleza voluntarista e espectral.
É a geral laicização dos discursos estéticos, numa procura do real e do humano. É a fuga estética de Deus (suprema ficção,... agora esquecida!) na comum procura da estética do Homem. A arte deixando o sagrado, a arte perdendo o arrogante A grande. "Os antigos queriam mostrar o grandioso de maneira prosaica, os modernos querem mostrar o prosaico de maneira grandiosa".
E é a inversão total de todos os valores (como preconizou Nietzsche), praticada em múltiplos rituais de paixão e iconoclastia.
Avançam as vanguardas, exorcisando os fantasmas grotescos da nossa contemporaneidade, (mostrando-os com ênfase acentuado), na procura do homem, na sua redescoberta... tendo como horizonte identificador a realidade crua da sua condição, o absurdo da sua existência, mas também a relativa superação da sua finitude no horizonte exaltante da utopia! Uma vontade figurada de redenção!
O Homem é dissecado, aberto, reformulado, deformado, (in)compreendido, anulado (ainda)!, feito figura fantasmática na sua ausência nos discursos modernos, nos discursos das vanguardas (a ausência como sinal implícito da dor que provoca a presença). Cubismo e homem cúbico, multifacetado e policentrado; Futurismo e homem em movimento, em acção e velocidade, homem/máquina; Dadaísmo e homem absurdo, iconoclasta e nihilista; Surrealismo e homem por dentro, onírico e irracional; Expressionismo e homem trágico, desesperado e patético, espectro de si próprio... etc., etc. Sucessivas "lições de anatomia"... exemplares desconstruções simbólicas.
São emblemas maiores da fealdade da arte moderna, da arte da nossa idade contemporânea, a saber: as obras "A fonte" (um urinol assinado e datado R. Mutt, 1917) ou a Gioconda litografada com grafitti de bigode e a legenda LHOOQ que soletrado em francês dá "Elle à chau au cul" (ela tem o rabo quente), ambas do dadaísta Marcel Duchamp; ou as expressões do automatismo, da irracionalidade mais primária e do inconsciente onírico e libidinal das obras surrealistas de um Salvador Dali, de um Max Ernst ou de um René Magritte. Ou o expressionismo violento e deformador da Nova Objectividade, ou ainda a procura do regressivo da expressão plástica na estetização das marginalidades - a arte dos primitivos, dos marginais, dos loucos, das crianças, - feita pelos artistas do Movimento CoBrA, Karel Appel, Asger John, Pierre Alleschinsky, ou pelo movimento da Art Brut, pelo seu expoente Jean Dubuffet; o figurativismo de fealdade explícita e violenta dos pós guerra, de Francis Bacon, Lucian Freud ou Vladimir Velikovik; ainda o brutalismo matérico informalista, do Expressionismo Abstracto - Tapiés, Millarés, Saura, todos violentamente ibéricos, hispânicos.
É, ainda, a atitude "camp", de ironicamente revalorizar o mau gosto (o kitsch) dos artistas da Pop Art (Andy Warhol, Robert Rauchenberg, Jasper Johns, Claes Oldenbourg, Peter Philipps, Ronald B. Kitaj... Peter Blake ou Mel Ramos).
Ou mais recentemente a Bad-Painting, a Transvanguarda, revivalismo expressionista destruidor da ordem, da harmonia e da serenidade. ªR. Penck, Julian Schnabel, Keith Haring, George Baselitz, Anselm Keifer... ou Francesco Clemente, Mimmo Paladino, Sandro Chia, Enzo Cucchi, Robert Combas, Hervé Di Rosa... etc.
Sucessivos triunfos "apocalípticos".
Mas falou-se até aqui de arte ocidental, europeia (também de Portugal) mas enfatizando as vanguardas emergentes nos centros da arte e da cultura internacionais, e entre eles a grande capital do espírito, Paris, e esquecendo as particularidades regionais, nacionais (algo periféricas também).
É ainda sobre Portugal, é sobretudo sobre Portugal e sobre a Arte Portuguesa que vamos reflectir. É do ponto de vista da modernidade do século XX português que interessa partir. É do genius loci, do espírito do lugar, enquanto contexto cultural, que é preciso iniciar a nossa reflexão:
Como era Portugal cultural nos primórdios do século XX?
O quotidiano português do início do século, que é quando nascem as vanguardas, pode-se retratar, sem esforço, como um quadro geral claramente periférico, desenhando um ambiente cultural mesquinho e medíocre, atávico, sem horizontes, caldo cultural de forte cunho tradicionalista, a ruralidade mais forte que a urbanidade. E a conjuntura política? A liberdade republicana de 1910, teatralizada em intrigas áulicas, lisboetas, foi reduzida a episódico e caótico intermezzo de pequenos títeres políticos, sem força para liberalizar radicalmente mentalidades, e muito menos atitudes e gostos estéticos por todo o país, que continua apático, indiferente.
Num clima de marasmo e atavismo todo dominantes, com os naturalismos serôdios ainda persistentes, durante largos anos, nos gostos das elites sociais, irão aparecer, com o escândalo e a incompreensão geral, os primeiros modernismos (actualização estética que tardava), trazidos por jovens artistas portugueses que estagiaram em Paris -. Amadeo de Sousa-Cardoso, o maior de todos - a "1ª descoberta de Portugal na Europa do Século XX" como dele dizia o também modernista José d'Almada Negreiros. Amadeo e Almada, Eduardo Vianna, deslumbrados com os novos figurinos - cubistas, proto-abstractos, na esteira do Orfismo do casal Delaunay, Robert e Sónia, (residentes por algum tempo em Vila do Conde, no norte português), ou electrizados pelas comunicações panfletárias dos futuristas italianos, (Filippo Thomazo Marinetti, entre outros), divulgam manifestos revolucionários, proferem conferências visionárias, (herméticas, ininteligíveis), publicam poesias futurantes (poemas visuais, gráficos), utópicas, iconoclastas, e expõem, no meio da incompreensão, da pateada e do gáudio de burgueses ignorantes e boçais, um conjunto diverso de obras de grande frescura, inovadoras, inéditas, desconcertantes.
São eles os verdadeiros futuristas portugueses, cubistas também, não alheios ainda ao simbolismo, nem ao maneirismo art-nouveau, e conhecidos ficaram como os Primeiros Modernistas, agrupando, ainda, entre outros, Santa-Rita - Pintor, o humorista Emmerico Nunes, o pintor e ceramista Jorge Barradas, e ainda o maior poeta do século XX, Fernando Pessoa (e heterónimos), agrupados todos em torno da célebre revista "Orpheu".
Nota-se ainda a influência proto-cubista de Cézanne em autores como Almada, Dordio Gomes, Abel Manta e alguns mais.
Os modernos procuram, por esses idos, o equilíbrio possível entre as vanguardas europeias, e o gosto português dominante, que, como já vimos, estava recuado de décadas, fatalidade nossa,... endémica!
A escultura, mais ainda que a pintura, continua agarrada à estatuária passadista, embora alguns autores se esforcem por lhe dar um cunho modernizante - António Duarte, Salvador Barata-Feyo, Ernesto do Canto da Maia (... ou, mais tarde, Martins Correia, Lagoa Henriques, e Gustavo Bastos).
Os anos 30 encontram Portugal na aventura totalitária do Salazarismo, o auto-designado Estado Novo (velhíssimo), na esteira, aliás, dos movimentos autoritários de direita que grassam por toda a Europa. Em Portugal - uma "ditadura de brandos costumes". Fruta do tempo - o canto do cisne do paradigma político moderno -, um hiato na pós-modernidade que é o século XX.
Ora ditadura e arte nunca se deram bem! (... e também arte e democracia, paradoxalmente, ... ou talvez não!). Talvez uma República Aristocrática, como era a Veneza dos quattrocento e cinquecento. Como dizia Thomas Mann: "(...) A arte não tem nada a ver com a ditadura, pois tem tudo a ver com a liberdade e inquietação, atributos que a ditadura não permite; e não tem também a ver com a democracia, pois identifica-se com a elite, e não se compadece com a nivelação por baixo que é promovida pela democracia".
Mas, contrariamente ao que se poderá pensar, o salazarismo inicial, e sublinha-se inicial, não foi de todo prejudicial para o curso da arte moderna em Portugal. Isso se deve inteiramente à acção esclarecida de António Ferro à frente da Secretaria da Propaganda Nacional - uma espécie de Secretaria de Estado da Cultura - o depois designado SNI (Secretariado Nacional de Informação). É sob o seu impulso que se realizam as Exposições de Arte Moderna do SNI - onde se conciliam os formulários da modernidade da arte portuguesa com as balizas ideológicas que o regime autoritário vai permitindo, timidamente.
Realizam-se também os modernos Salões da S.N.B.ª e o 1º Salão dos Independentes, em Maio de 1930.
Os Anos 40 vêem a Grande Exposição do Mundo Português, em que numa enorme operação de propaganda do regime salazarista, se consegue o milagroso equilíbrio entre a arte oficial, académica e anacrónica (a designada arte estado-novista) e o(s) modernismo(s) envolvidos em variadas soluções de compromisso, balançando entre inovação e tradição.
Dominantes, ainda, em largos sectores do gosto, são os conservadorismos e os anacronismos, na sequência dos realismos académicos (obsoletos) da Europa (da Alemanha Nazi à Rússia Soviética). E teremos na estatuária académica os vultos retrógrados de Leopoldo de Almeida, Diogo de Macedo, Francisco Franco e Álvaro de Brée e na pintura académica os nomes de Eduardo Malta, Henrique Medina... ou Luis Aldemira-Varela...
É por esses idos, finais dos quarenta, que o regime autoritário português se irá afastar progressivamente da abertura à modernidade (António Ferro já falecido, por essa altura!)... o experimentalismo e a vanguarda serão cada vez mais incompreendidos e marginalizados. Mas expandem-se e multiplicam-se, apesar da repressão ideológica (e mesmo física, política - muitos serão presos!) os vultos da terceira geração modernista, balançando entre, por um lado, o expressionismo, e a variante mais aberta dos realismos alinhados - o Neo-Realismo - e, por outro lado, o Surrealismo Português e as primeiras manifestações pujantes e abertas do Abstraccionismo, de raiz parisiense. E são expressionistas maiores, a saber: Mário Eloy, Júlio Pomar, Mário Dionísio, Dominguez Alvarez, Júlio (dos Reis Pereira), Manuel Ribeiro de Pavia, Augusto Gomes, Rogério Ribeiro, Júlio Resende, etc., alguns marcando também a vida efémera do neo-realismo português.
E são surrealistas de monta: António Pedro, António DaCosta, Fernando Azevedo, Marcelino Vespeira, Moniz Pereira, Cândido Costa-Pinto, Artur do Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny de Vasconcelos, José-Augusto França, Alexandre O'Neill, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa entre outros, e na escultura Jorge Vieira. As polémicas estéticas começam por essa altura, o pós-guerra, finais dos anos 40 e anos 50, a girar em torno do dilema estético: figuração versus não figuração.
A Abstracção, via ensino da Escola de Paris, em duas vertentes, ora de pendor geométrico ora de carácter lírico e gestual, manifesta-se abertamente com vultos nacionais de muito prestígio: Maria Helena Vieira da Silva, expoente da "École de Paris", e cá, dentro de portas, Fernando Lanhas, Nadir Afonso ou o escultor Arlindo Rocha.
Dos anos 60 até hoje, a arte portuguesa actualiza-se, conseguindo a sua cabal identificação com os grandes formulários internacionais. Desenvolvem-se correntes expressionistas abstractas e gestuais, reaparecem neo-surrealismos, surgem tendências minimais e conceptuais, aparecem novas figurações na sequência da Pop-Art, surgem as "performances" e a instalações, e por fim os novos expressionismos (a bad painting e os "realismos feios" das últimas décadas).
São neo-surrealistas destes idos: Carlos Calvet, António Santiago Areal, Eduardo Nery, Eurico Gonçalves, Pedro Oom, António Quadros, Eduardo Luis... São artistas pop: António Palolo, Eduardo Nery, René Bertholo, Lourdes Castro, Eduardo Batarda Fernandes, ou António Charrua.
São expressionistas abstractos: João Vieira, Jorge Martins, Manuel Baptista...
Os anos 60 são o despertar para a "conquista portuguesa do Presente", e a descoberta dos ritmos mais recentes. Em Paris aparece o grupo português KWY. Ká Wamos Yndo, como traduziam com humor.
Não é, ainda, de esquecer a actividade, altamente meritória, incontornável, de divulgação da modernidade mais recente do mundo das artes, que promove a (inevitável) Fundação Gulbenkian, a partir de 1958, verdadeiro Ministério da Cultura (que em Portugal nunca houve verdadeiramente!), ou as famosas Exposições Gerais de Artes Plásticas (a partir de 1946) na S.N.B.ª, ou a acção pedagógica, tendencialmente mais moderna, das Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto, actualizada pelos meados do século, por altura da reforma do seu ensino, e com a abertura generalizada que proporcionou a democracia (o 25 de Abril de 1974).
As últimas décadas têm sido, pois, as da actualização premente. À luz dos novos discursos da arte internacional, os artistas portugueses não balançando cronicamente entre sentimentos de xenofilia e xenofobia, mas sempre batalhando para superar o quadro exíguo de cultura periférica que tem sido uma fatalidade portuguesa.
Destaquemos então a fealdade portuguesa do século XX: o Almada futurista, contestatário, polémico e escandaloso das conferências; o Amadeo de Souza Cardoso, embora de obra exígua pela morte prematura; os expresssionistas: Eloy, Pomar, Resende, Júlio; os surrealistas: António Pedro, Dacosta, Cruzeiro Seixas, Vespeira, Santiago Areal, Jorge Vieira, e ainda os percursos individuais de Júlio Pomar, Paula Rêgo, João Vieira, Bértholo, Martins, Batarda, ou ainda Carreiro e tutti quanti, que na década de 80 ressuscitaram expressões fidedignas duma "bela fealdade" contemporânea.
... E depois deste últimos idos, neste fim de século (e de milénio) qual o devir da Arte? a Portuguesa? A Europeia? A soi-dizant Ocidental? Qual o caminho para que a Arte aponta, num futuro "cada vez mais à porta" do presente?
A arte, ou confirma os diagnósticos descabelados de alguns (poucos) coveiros do simbólico, que profetizam o seu fim inadiável-a morte anunciada e a prazo-; ou, contrariando todas as previsões catastrofistas e escatológicas, segue na sua via constante de ser testemunho, identificação, religação, e símbolo maior da vida e dos homens, da sua circunstância, da sua condição. E do sentido trágico da sua existência.
Dito por outras palavras: ou estiola em discursos redundantes que redizem, sem alma, tudo o que já foi dito, ou, o que parece mais certo, se renova em discursos outros, de novíssimas formas e diversos e novos conteúdos!
... Mas não sejamos nós tentados também a profetizar...
Passemos antes às imagens, pois elas valem por mil palavras. Dizem!
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