quarta-feira, janeiro 24, 2007

ADÍLIA LOPES OBRA

PARTE I
CAPÍTULO
I
A Poesia, dizem, é o rebordo negativo da comunicação. A poesia de Adília Lopes é pelo menos mais complexa e mais simples do que isso. Talvez tenha conseguido tratar a poesia considerada linguagem restritíssima como informação ou publicidade universal. A última Adília escreve axiomas e legendas. Os conceitos submetem a informação poética à redução que economiza a Arte.(Gunvald Wahlöö)
Se a maioria dos poetas em existência parece não gerar grandes incompatibilidades de juízo «estético» (alguns poderiam ser outros quaisquer), a poesia de Adília não emparelha facilmente com outras; mas também não diverge delas propriamente em questões de Arte. É-lhes indiferente.Numa poesia que se prezou de inovação, dir-se-ia que uma grande porção de poetas existe em regime de plebiscito que protege quer dos mestres quer da sua contestação — da «autodestruição» da arte —, enquanto Adília Lopes elimina mestres, «vanguarda» e plebiscito na «pessoa». (cf. Diogo, 1998: 78 e ss)Adília não conduz a poesia à qualidade, i. e., ao juízo de gosto universal, consensual ou plebiscitado (não me refiro ao gosto vulgar e comum em forma de multidão, mas ao dominante no campo literário dito autónomo, que é grosso modo bom gosto e classe média)1.
1 «A alegre pequena equipa, na sua totalidade, volta portanto a interpretar em farsa a tragédia da matança das formas artísticas, explorando-a com uma parcimónia de gente com rendimentos a prazo.» (Internacional Situacionista, 1997: 122-3)

CAPÍTULO II
AUTORIA E AUTORIDADE

‘Adília Lopes’ é o que permite passar da «mente» ao modus vivendi».(Rita Minardi)
Enquanto os nomes dos poetas se tornam citações cum auctoritate, o nom de plume ‘Adília Lopes’ é seguramente mais o da criada e menos o da autora. A insignificância do nome próprio pode também estender-se aos títulos de poemas, comprometendo do mesmo modo o autor e a dignidade dos autores.Um bom exemplo parece ser o que se passa com «Monumenta Henricina». Em O Clube da Poetisa Morta é porventura o único texto «poético», por lição de 70. Em Sete rios entre campos o enigma do seu sentido é elucidável de dois modos incongruentes. O esburgar do poema original limpa-o de implicações e ressonâncias de arte (existentes como tal porque signées Fernandes Jorge):
Monumenta Henricina
Tu tens o cargo de receberas coisas que são apartadaspor minha almapois a ti foi dada de sesmariacerta terra minhapara fazer em ela çumagralporque tu meu servidorés o meu contadordou-te pois o recebimentodos dez reaisque são para Ceutaassim tens tu o cargo do recebimentodo nosso tesouroem a dita cidadee seu termo(Clube 27)
Americano gigolo? Monumenta Henricina?
Toma os dez reaisque são para Ceutanão me quero esquecerde nadaatrás de mimem a dita cidadee seu termo(Sete rios 48)
Banalidade de um contrato em torno de terra e dinheiros, tornada pompa por uma língua velha, velhos costumes, uma enunciação muito segura das posses e dona porventura da alma com que as tem. A suposta impermeabilidade poética ao contexto, que reconhece o seu igual num entorno morto e o adopta; permeabilidade do texto descontextualizado a todos os contextos, significada na possibilidade, que se oferece, de uma leitura «obscena» e, pelo cinema, muito moderna e leiga. Um poema como o primeiro — não me refiro a ele, mas ao «original» — reclama uma autoridade para a poesia que repete a definição da poesia (ou já da literatura) efectivamente existente e fundada em autoridade: linguagem diferente, discriminativa e de preferência vetusta, que está nas escolas como um análogo da nação anosa onde cabem as classes sem discriminação.Adília faz com a sua poesia o que faz com a poesia dos outros. Num certo sentido, ela é poesia de outros.

CAPÍTULO III
A NOSSA PRISÃO É UM REINO

A lógica é a noiva; a «batata» e a «pessoa» seus solteiros.(Adinilson L. Martins)
É nesta situação «impura» que Adília Lopes nos propõe, também ela, a sua Obra. Como quem coloca a sua Cruz na Rosa do Presente — e Adília assina cada vez mais de cruz —, permite-nos apreciar cerca de duas décadas de produção própria e pôr em perspectiva uma poesia contemporânea muito menos definível enquanto tal, e que, no entanto, em termos portugueses, foi constituindo maiorias ao centro, e às avessas de Álvaro de Campos: nenhum poema em linha recta, poeta heróico-elegíaco e supondo-se «dissidente», integração do «real» nas boas formas da linguagem e do sentimento, suplementação da metafísica, liturgia. Quem, se não Adília, foi capaz de começar um poema assim, e com palavras de outro: «Eu que já fui do pequeno almoço à loucura» (O Decote da Dama de Espadas 42)1?Num certo sentido, os poemas de Adília são completos. Não nascem como fragmentos para serem destacados, separados, circunscritos pelo que falta. Em geral, não comportam ainda nem objectos nem símbolos dados à contemplação estética. (cf. Silvestre, 1999) Alguma coisa lhes consente a concisão — o humor? —, enquanto outros, por contraste, demandam «sentido» e «sentimento» que antecipam a aprovação que o Poeta de Pondichéry busca coitado. Usam de uma linguagem que constrói, que se especializa, e que, por isso mesmo, e não exceptuando os poetas mais enxutos e que praticam a vigilância sobre a forma, não escapa ao juízo de prolixidade — uma vez que, face à profundidade do «objecto», a linguagem seria sempre redundante. Não há aqui um poeta-padre que dirigisse a Deus directamente, e só a Deus, o ofício da missa santa. A poesia de Adília não é vestalizada e desconhece os páramos da Musa. Nos poemas de Adília a linguagem não alcança um «objecto» e um «símbolo» através de alguma desadequação linguageira. Não parece nunca um artefacto auto-sustentado, parco em símbolos, e estes «correlatos objectivos», apontando oblíqua, paradoxal ou ironicamente para uma verdade essencial, sem estes recursos inapontável. A última Adília é como os balineses; não tem arte; faz tudo o melhor que sabe.Esta poesia indigna não tem a presença que «toda» a nossa poesia recente presume ter. O comentário ao Almoço do Trolha salta sobre o momento de graça que transcende a representação em presença; não lhe acha um espírito santo. O mesmo valeria para toda a obra que por sua conta apostasse nessa transcendência contra a representação (cf. o sublime à Rothko). Os comentários de «Adília» acrescentam à obra que comentam e reduzem uma «ideia exterior» que nega a transformação da suficiência formal em (boa) consciência. A este movimento não escapa ainda a anti-Arte. Leia-se em Irmã Barata, Irmã Batata: «Instalação de Christo: cobrir por completo o chão da praça de Tiananmen com ketchup. Ketchup é um molho chinês e uma palavra chinesa». (Irmã Barata 20) A arte enquanto pública e coerência local não alcança ser a realidade, porventura melhorando-a. Repare-se na natureza filológica do comentário, que mima o conceptual em forma de instrução (o infinitivo regente). Pedestre e patuda, a «filologia» demove as pretensões da «metafísica» ou da «teologia» em pontas estéticas. Nenhum sentimentalismo engordado pela indignação. Recusada, a arte não chega a serviço (ao) público, nem pelo consenso sentimental, nem pela heroicização admirável do Autor self-made self.
1 O poema A Elisabeth foi-se embora é um dos poucos na poesia portuguesa à altura da brutalidade metafísica de coisas como as de Campos, e, entre todas elas, o poema sobre a dobrada à moda do Porto, servida fria pelos missionários da cozinha. Veja-se tudo o que Adília faz com o «túnel».

CAPÍTULO IV
A AMA E AS FORMAS

Aqui está a beleza, aqui tu consomes.(Internacional Situacionista, 1997: 143)
A forma de Adília não é de resto o «poema», mas o «livro». No «livro» os poemas são completos; não abrem a um ponto de fuga estético que é sempre um acordo com esse público que, mesmo restrito, dispõe dos temas grandes e dos temas maiores. (Kraus, 1998: 66) O «livro» — a ama e as formas — é uma «estrutura» de acolhimento em que a relação entre «sujeito» e «objecto» não se situa além da linguagem, e não é purificada por sentimentos transcendentais ou por formas vigiadas, equivalentes do conceito. A lógica é uma função do humor que não revoca, a forma é mistificada, a «pessoa» é datada, o sujeito cogital, restituído pelo poético, não se desprende da sensualidade, da animalidade, da infância, da experiência e do apetite1. No «livro», onde a lógica é mergulhada na língua como «lógica da batata», (Silvestre, 1999) tornam-se elásticas as quatro formas do princípio suficiente: a causa destaca-se do efeito, o fundamento da crença, a premissa da conclusão, o motivo da acção. Tudo isto que dotaria a obra de uma afinidade com o camp, (Diogo, 1998) na medida em que aí se dava figura a uma História emancipada de causas e visões do mundo, e por isso percebível esteticamente, a arbítrio2, acaba finalmente (i) num deixar do sentido ao «acaso», como quem se regesse pela «lógica da batata», ou como quem, em questões de sentido da vida, pelos dedos contasse («meu menino / seu vizinho / pai de todos / fura bolos / mata piolhos», Florbela Espanca espanca 30) e (ii) nos saltos da fé: «acção / não é / a vida / a vida é / a acção / de graças». (Florbela Espanca espanca 20-1)Quando o poema, porque cultura e melancolia (superioridade de professores que herdaram a acedia e um mundo com ela), supõe um «eu» muito puro e alheio à convenção social, um «eu» que estaria «lá» mas fora do foco do leigo presbita, o discurso de Adília no seu melhor mostra o «eu» como pedra de fecho da abóbada conceptual e brinca com o «eu».É certo que a interrupção do monólogo transcendental não se processava longe dos moldes do «moi haïssable», quer como o belo que foi «eu» — disso que encontra consenso e retribui aprovação —, quer como a «pessoa» pungentemente cómica e apanhável em faltas de gosto — reprovável e corcunda infinitamente susceptível, que é um corpo estranho nas rotinas do belo: «já fui bela uma vez agora sou eu» (O Decote da Dama de Espadas 43); «e o chantagista publicava um postal ilustrado / que eu escrevi a Diderot de Pondichéry» (O Poeta de Pondichéry 23). Como se pode ler na primeira obra de Adília:
agora já nem consigodizer nada de mim para mimo de mim para mim acabounão há lugar para mimnum quadro de Rubens(Um Jogo Bastante Perigoso 23)
Um quadro de Rubens é um mundo pleno, esteticamente justificado (um «monólogo transcendental»). Enquanto forma «eu» é uma ratio estética transposta como mundo para o mundo que a admira: poder, egoísmo, destreza de espírito. (cf. Diogo, id.: 85) A questão é muito precisamente estética, ou seja, da especialidade e sob a autoridade social de doutores esteticistas e cabeleireiros (todos nós):
não posso passar sem a Elisabethporque é que a despediu senhora doutora?que mal me fazia a Elisabeth?eu só gosto que seja a Elisabetha lavar-me a cabeça(…)ah não haver facas que lhe cortem opescoço senhora doutora eu não voltoao seu antiséptico túneljá fui bela uma vez agora sou eunão quero ser barulhenta e sozinhaoutra vez no túnel o que fez à Elisabeth?a Elisabeth era a princesa das raposasporque me roubou a Elisabeth?a Elisabeth foi-se emboraé só o que tem para me dizer senhora doutoracom uma frase dessas na cabeçaeu não quero voltar à minha vida(O Decote da Dama de Espadas 43)
Que corpo subjaz à maior parte do consenso poético contemporâneo — à sua violência simbólica? Que corpo corresponde à linguagem poética corrente? O corpo neutro, mas não obstante centrado, senhoril e com a autoridade advinda da inacção expectante de quem se apresenta modelo e mesura. É o corpo da auto-apresentação do autor, acarinhado pela «filosofia», e, sob o polido narcísico, muito redondo assaz.
Body Art?
Com os remédiosengordo 30 kgo carteiro pergunta-mepara quandoé o meninonos transportes públicosas pessoas levantam-separa me dar o lugarsento-me sempre
Emagreço 21 kgas colegasda Faculdade de Letrasperguntam-me se é meninoou menina
No metro um rapaze um velhodiscutemse eu estou grávidao rapaz quer-medar o lugar
Detestoo sofrimento(Sete Rios 42-3)
A poesia parece ter voltado a ser questão de alguns discursos que são afirmados através do «eu». Esse «eu» antecede «afirmações», esse «eu» equilibra o ovo afirmativo de «ideias» e «ideais» os mais «elevados» e convenientemente personalizados.O «eu» na obra de Adília parece antes subsumível no modus vivendi. Se o «eu» — incapaz de de ser reles e de praticar uma baixeza — é basicamente uma distância da «mente» em relação ao mau gosto e à inabilidade para o trágico, que é uma distância de «poesia», em Adília toda a poesia acaba a ser mais um discurso social, i.e, um forma de condicionamento empírico do «eu» e da «mente» e do «gosto». É o que se pode deduzir também da transformação da criatividade incondicionada (a «melancolia» sem objectos no mundo é uma sua figuração — que de resto calha bem às meias competências protegidas dos provincianos de umas galáxias apartadas) em cómico, jogo de palavras, dito de espírito e «boçalidade».Toda a obra de Adília se dirige contra a suficiência estética, resumível na forma «eu»; todo o cómico, todo o absurdo, toda a incongruência (e alguns traços inegavelmente «idiotas») se dirigem contra isso que na poesia, na arte e na vida é incondicional «publicidade em favor da existência». (Adorno, 1984: 435) Obras tão notáveis como O Poeta de Pondichéry — que é de uso resgatar da insignificância, por isso, é de suspeitar, que o «drama» é artístico e mesmo angústia da influência — e Maria Cristina Martins são os cumes de um «processo cómico feito ao cómico» e «ao humor satisfeito». (id.: ibid.) O que da obra mais ressalta é «a inanidade manifesta da pretensão da subjectividade a ser trágica». (id.: ibid.) Ou mesmo, porque o que está em pauta não é Beckett mas lirismo, heroicamente elegíaca. E não é irrelevante que a transformação da subjectividade em cómico de «pessoa» tenha como seu contexto a arte e a estética invadidas por «psicologias da vulgaridade». Que dizer a isto, muito já sem o álibi Adília Lopes: «Tenho uma doença mental, tenho uma doença de pele. A pele é exterior, o cérebro é interior. Tenho um eczema, tenho uma psicose. Às vezes penso que a pele é interior e que os meus miolos estão à mostra como a mioleira da vaca no balcão do talho». (Irmã Barata, Irmã Batata 23)?
1 Partindo do princípio que os exemplos devem ser bons exemplifico com um poeta infinitamente superior ao comum (Carlos Poças Falcão) o desprendimento cogital alcançado via poesia, o monólogo transcendental, a ausência de «pessoa», a transcendência rothkiana de toda a representação em amigos que orbitam sobre «nuvens», eles mesmos «nuvens», assim tornadas homeomorfas do «lugar». Não tocando no sentido óbvio, que se quer sentido simples (as nuvens empanam a amizade), as «nuvens» dão o «lugar» e o «lugar» é o «sagrado». A amizade é apre(e)ndida através da vocação manifesta da arte modernista para o espaço, onde se guardaria do tempo e demais vicissitudes. Esta dicção simples e muito comunicativa apoia-se no poético de Helder usado com parcimónia e como sinais de esperanto e língua franca: «cintura magnética», «orbitação diurna».Transcreve-se:
HINO (Falcão, 1999: 66)
Dar espaço, ver ao longe as amizades a brilharestelarmente. Movem-se, enlaçam-se os seus ritmose em gravitação vão abrindo um firmamento.
Dar espaço, para visitação e crescimento.Deixarmo-nos levar pela cintura magnéticaàs noites uns dos outros.
É por contentamento que os sinais são emitidospor vezes de tão longe, mas logo tão presentesque a densidade aumenta e despertam novos sóis.
Porque é muito espaçosa esta arte dos amigos:não tocam no rebordo de uma natureza frágil senão para curar e afagar.
Se há um turbilhão eles não se distanciamconhecem que é o tempo a querer desmanchar o espaçoe por isso dão-se espaço e apuram-se mais tempo.
Se há nuvens, deixam-nas passar.Rodam bem por cima em orbitação dirunae quando as nuvens passam estão onde amam estar.
2 «Almoço do trolha // Pobríssimos / as cabeças cortadas / mas tão felizes / homem mulher e bebé / de um tijolo / do patrão / fizeram assento / o Estado Novo impede-os / de tirar os sapatos / o Partido Comunista também / desce sobre eles / o Espírito Santo / do almoço / vão comer língua?» (Clube da Poetisa Morta 19) Face a um regime a que repugnava o pé descalço e que escondia a mendicidade, o Partido Comunista, supondo-se não hipócrita, reivindicava como seus os valores da «dignidade» que o Estado Novo policiava como «compostura». Tratava-se de dar a uma questão política um consenso de «arte», pois «é preciso ter boas maneiras / em toda a parte / especialmente / em questões de Arte.» (Sete rios 60) A arte é um análogo das boas maneiras, e se calhar tanto mais quanto essa arte for questões de Arte.

CAPÍTULO V
FIGURAS DA EXPERIÊNCIA

O mundo é uma casa de passecom as paredes salpicadas de framboesa
O mundo é um matadouro disfarçadocom as paredes forradas de cetim(Adília Lopes, Sete rios entre campos 44)
As inexactidões da «pessoa» destoam da chamada «perfeição» para que tende o mundo. Assim como o Sr. de La Palice será vítima da «entropia», há quem seja vítima de Beethoven (Para Elisa!), ou de uma observação de Pessoa sobre Milton. No caso do Para Elisa, uns dias a peça era tocada pior e outros menos bem do que quando se merecera os cumprimentos de uma pessoa que se estimava — depois do cumprimento, o intérprete nunca acertava com aquele seu dia triunfal (O Decote da Dama de Espadas 52-3) Os desastres de Sophia do eu — que começam por decorrer dos exageros da espontaneidade, mas também dos excessos do zelo e do são desejar, que tudo deitam a perder porque justamente comprometem a mesma espontaneidade — são postos na perspectiva da «pessoa» colocada sob a expectativa da aprovação do outro. Este, todavia, ou tem mais em que pense, ou é incapaz de significar o que quer por inequívocos sinais. Atina-se por acaso e depois é hoje e é eu; é-se susceptível a uma palavra casual, «indiferente», que se torna oracular e cai num «eu» com uma força de destino que o transforma em saco roto. No caso da observação pessoana tornada observação pessoal por uma atenção delirante (por um delírio de deferência e de respeito), também a vida escapa à excelência, impondo a «pessoa» à autora, que acaba a «dar erros de ortografia» e a «esfregar o chão numa casa de passe» onde «os clientes e as prostitutas» são «mais afáveis do que Milton». (Idem 54-5) Retoma-se O Poeta de Pondichéry (1986), vítima como «pessoa» de Diderot; e antecipa-se o bordel de Maria Cristina Martins (1992), talvez com um estado anterior no armazém de A Pão e Água de Colónia (1987) que não restitui a avó e a mãe originais. A última casa antes do nada parece uma forma cómica de salvar o optimismo quanto ao mundo concebido como melhor mundo possível. O desastre dá origem a uma resposta estética não apósita; a vítima indicia a mesma estética como inadequada, ou já o monólogo transcendental.As vantagens estranhas de se viver no melhor mundo possível descobrem-se na substituição dos «originais» por «falsos» ou «derivados»: a casa pelo armazém, mãe e avó por aproximações, a nursery pelo bordel, Milton por prostitutas e fregueses; o Para Elisa por chocolate quente e comprimidos para dormir, um vestido infeliz por uns botões mais inexpressivos, uns brincos por uns anéis. Nos dois últimos casos, e o procedimento é muito corrente na obra de Adília, as «pessoas» que se regozijam com o mundo enunciam uma doxa anterior ao presente estado do mundo. Invoca-se a Providência, sabido que é que escreve Deus direito por linhas tortas:
as duas meninas acederam de boa vontadeficou cada uma com o seu anele não se cansaram de espantarcom o destino que tudo encadeia e concertase tivéssemos as orelhas furadassó podíamos usar o par de brincos à vez.(O Decote da Dama de Espadas 68)
para chegar a estes botõesfoi preciso comprar aquele vestido infeliznão há acasosno encontro e desencontrodas pessoas com os vestidos(Idem 69)
Tudo isto se joga no desajuste entre a satisfação esperada e a satisfação obtida. Em torno desse desatado configuram-se ficções diversas. Fica-se com o pouco que se transforma em grandeza do destino; a «pessoa conclui-se numa história de clara derivação infantil-popular, esquivando-se a qualquer estado de saciedade imaginária: o completo que a deixa para trás na larga romaria das pequenas e grandes histórias, que são consequência e causalidade, não cessa de espantá-la. A história acaba para que não cesse a «pessoa»; a história tem uma moral e ter uma moral é ser «pessoa» que se contenta com «pouco». Ao invés, uma «moral» torna uma história conclusiva, limpando-a de todas as aderências do acaso; a «pessoa» é agarrada pelo «pouco»; e o âmbito de aplicação da moral da história é restrito e é nulo — diz apenas respeito ao domínio de objectos da história, ou seja, aos encontros e desencontros das pessoas… com os vestidos (ir)respectivos. Aplicando às ocorrências uns óculos «estruturais», muito parecerá que a pessoa é um si que, buscando-se a si destinado, adopta algum desirmanado como seu objecto de concretização e de favor. Conforme se perspective o desemparelhamento (conforme domine ou não a história), assim as subtis variações do humor e do cómico que todavia tendem a rodar em torno da inabilitação do «eu» como «pessoa», que ou é ressalvada pela (moral da) história ou passa ao lado da história. Aliás, também aqui as variações são muitas e todas com interesse. A pessoa é o que volta a si pela nenhuma diferença com as pessoas, o que é talvez uma variante sobre a presença positiva e «nula» do eu da enunciação; a falta de jeito da «pessoa» sobrepõe-se nolens volens ao indiferente contar-se das histórias, que antecede a «pessoa» para ser «mundo»; a «pessoa» encontra-se em histórias que não são suas e muito como não pode deixar de dizer «eu»; a «pessoa» é vítima obstinada e inocente das histórias alheias, que extraem da inocência da «pessoa» — muitas vezes social, e logo doxa — uma experiência que em rigor a «pessoa» não tem. A «pessoa» está em algum «livro», tal como está em algum «eu», em alguma «história», em algum «mundo» — nalgum completo que o é, dir-se-ia, porque nele não há um lugar para si. Como a história não pode deixar de ser história e logo chegar a fim como quem a uma moral chegasse, consegue-se ser uma personagem de Berthe Bernage (a quem ainda por cima foram restituídas características e episódios postos sob tabu como a menarca ou o assédio sexual infantil) numa história eticamente avançada: é o caso da Continuação do Fim do Mundo. A «pessoa» é uma Sofia que não aprende com os desastres, não adquire experiência, antes se acha adquirida por esta e desde sempre. Esta estranhíssima sabedoria da «pessoa», que é um D. Quixote de espécie nova, decorre de não se dar por achada numa história para onde ninguém a convidou.O «romance» dos brincos é submetido a «bifurcação sucessiva» (divergência e aumento de incerteza), finda a qual fica a «(outra) pessoa» — um diferencial de satisfação esperada/conseguida que impõe (i) a exclusão da «pessoa» a partir da identidade da «pessoa» com qualquer outra «pessoa» e (ii) o sucedâneo ou o derivado. Este é tal no «romance» que a «pessoa», posta na história dos outros, deve contentar-se com a (boa) intenção alheia. A operação é lógica e fundada em binários, ou seja, é uma moral inamovível, graças ao que o evento recupera, na própria intenção, da disjunção entre intenção e evento. A «pessoa» adopta o que a faz «pessoa»: a transformação da experiência em comunicação que torna a doxa um paradoxo.
Divido a minha vidaem duas partesuma em que tinha orelhase não tinha brincosuma em que já não tinha orelhase toda a gente me dava brincospara me consolar de duas coisasde não ter orelhase de não ter tido brincosquando tinha orelhasde todos nós assim era eu sóporque orelhas tinha duas(A Pão e Água de Colónia, sublinho)
Na forma exemplar de um desastre de Sophia, em todos os casos gera-se uma figura da experiência que, no momento em que surge, surge para anteceder toda a «juventude moral». A meu ver, o qui pro quo tem as ocorrências mais notáveis em três textos: no encontro com a «cena primitiva» transcrita para cães rafeiros, em O Decote da Dama de Espadas; no último poema de Um Jogo Bastante Perigoso; e num aforismo de Irmã Barata, Irmã Batata. A inocência comunicada é pervertida a latere, transformando-se em cinema sem banda sonora; o que não aconteceu existe como comunicação e maximamente; a diferença entre esperado e obtido, intenção e evento pode ser apenas uma diferença de ênfase — decorrer «logicamente». Em várias modalidades, um conhecimento vem negar a inocência e quase sem contacto. A inocência é experiência, e logo continuação de algo. A «pessoa» posta no mundo dá a ver que o mesmo «mundo» é desde sempre o fim do mundo «continuado» — descontinuado, vale dizer de um Éden ou de uma Origem. Afirma-se uma incerteza no aparentemente mais certo (ou no mais expectável); dispensam-se factos e existência. A «pessoa» está no mundo e o mundo é experiência, mesmo quando ainda não se experimentou. Ser «pessoa» é ser-se antecedido pelo mundo. Começa-se por se ser violado e todo o início é a posteriori. (A Continuação 90) A «pessoa» é uma função da entropia, na medida em que ser-se «pessoa» é ser-se expelido da Presença para a incerteza. A experiência é aquela mácula original que justamente nega a existência de uma Origem. Ser-se «pessoa», enfim, é ver desmentido o monólogo transcendental pelo mundo provável. O poema de Carlos Poças Falcão pode servir como exemplificação de uma negação do mundo provável pelo monólogo transcendental. Cito os textos:
A menina, aflita, gritou à mãe:— O outro vai matá-lo!Mas a mãe, embaraçada, calou-a:— Não. É um cão e uma cadela. Não olhes para lá.Então a menina tapou os ouvidos.(O Decote 26)
O que me custoufoi tudo ter acabadocomo tinha começadocomo se nada se tivesse passadoduranteora o que se passou duranteainda hoje me incomodae portanto deve ter acontecido(Um Jogo Bastante Perigoso 59)
Roubei uma vez um livro de uma biblioteca pequeníssima. Foi a tradução inglesa do Frei Luís de Sousa feita por Edgar Prestage no princípio do século. Fui ver se o «Ninguém!» tinha sido traduzido por «Nobody!» ou «No one!». Foi traduzido por «No one». (Irmã Barata, Irmã Batata 7)
A experiência é um erro sobrevivente (e logo, num certo sentido, a inocência).

CAPÍTULO VI
JUSTIÇA POÉTICA, PSICOLOGIA E REPRESENTAÇÃO DE FAVOR

O meu sentido de humor é o meu sentido de amor sem ironia.(Adília Lopes, «A Minha Filha» 81)
Considerar a sobrevivência do erro como futilidade, e transformar a poesia em filosofia no bordel.(Nathan McWilliams)
À conta do seu desprendimento «cómico», a linguagem de O Poeta de Pondichéry, de Maria Cristina Martins e de A Continuação do Fim do Mundo adquire a densidade e a complexidade da vida própria. Defendo agora a sua «literariedade». Torna-se não apenas «apropriada» a situações imediatas, mas também ao projecto abrangente, que, sendo «romanesco» ou mesmo «dramático», tem também a ver com o «mundo». As «pessoas» seguem um «prestígio» (Diderot, M. le Prince, o Amor) que as conduz à «tuerie» com a obstinação «quixotesca» de uma doxa não muito longe da etiqueta ou das boas maneiras (e também dos bons sentimentos), e que atropela o princípio da realidade. Aqui não importa que a história, por condição, decorra e se afaste da Origem através de um encadeamento de «consequência» e de «lógica»:
O lar da terceira idadeque se seguiuàs doençasque se seguiramaos maus empregosque se seguiramao desempregoque se seguiu ao suicídioque se seguiu à sidaque se seguiuà drogaque se seguiuà violaçãonão aflige Túlionem Maria Andradeque começarampor ser violadosmas que em todo o lugartêm espaço para sonharmesmo no não lugardentro da cabeçae do cuque a violação foinos consultóriosdo Dr. Figueiredo Nunese da Dra. Malheirosa posterioricom a cama de casalcom o pinheiro bravoquase entrandopela janelade permeio.(A Continuação 90)
A imagem instantânea e estilisticamente não tratada reaparece, modificada em si ou notoriamente pelo contexto — caso do pinheiro de fálica presença que antes fora árvore de Natal —, e em geral impondo uma nova possibilidade da «história» em mais um começo a posteriori. Amplifica a relação entre eventos e personagens, ou antes, o desencontro entre «pessoas», como focos de intenções — e acontecimentos, como objectos de intenções, a que, todavia, são indiferentes. Desprende-os de uma estrita causalidade e concede-lhes significações mais abstractas. As imagens funcionam por toda a obra independentemente da intriga — por um efeito de construção, em Maria Cristina Martins a história não cessa de começar —, solicitando ao leitor respostas motivadas pela situação romanesca ou dramática mas não de todo a ela acorrentadas. Enfim, a diferença entre o conhecimento da personagem e o conhecimento do leitor não é do tipo habitual nas ironias. O que o leitor sabe não é a verdade avessa do que sabe (ou, em rigor, ignora) a personagem. Não é difícil perceber que o contexto onde se move a personagem é contínuo ou construído com algum saber do leitor, que é uma superioridade sobre a «pessoa». Mas o ethos da personagem é impossível naquele contexto que é ao leitor tão complacente. A personagem move-se como um clown trágico num ambiente que lhe é hostil. As palavras que a «a dor» lhe arranca não comovem penedos com a dignidade humana nem elucidam os Fados, que são surdos: «Guilherme chamava-se Hipólito»; (Maria Cristina Martins 62) não há acasos nos encontros e desencontros das pessoas com os vestidos.A personagem não é No one!, porém No one. Constantemente violada (e também pelo leitor), a personagem vive em todo o lugar: casa de fazendas, bordel, prisão onde escreve com as unhas — indiferentemente dentro «da cabeça / e do cu». Lembremos a bifurcação sucessiva, que é a continuidade por consequência, e que penso eu que seja também utilizada como uma figura do afastamento irreversível da fonte e da origem, tal que não há conservação de «energia», estabilidade da «figura», pureza da identidade ou do sentido que se suporiam dados à partida, e adequação do ser ao mundo. Às quebras da necessidade na suposta perfeição daquele — que são por si só «experiência» e por si só antecedem e impossibilitam uma qualquer nudez edénica, seja ela estética ou moral — corresponde a figura de Babel a que, mais tarde, se irão opor o «Pentecostes» e a «linguística histórica». E, já agora, a «lógica da batata», nunca longe do humor.Descrevo a emergência de uma segunda fase na obra de Adília a que, suponho eu, serve a primeira de fundamento.O humor que adopta uma perspectiva contrária ao «humano» — humano definido por «Kant», por «Comte» e pelas gramáticas normalizadas de todas as boas linguagens e boas formas — assume por isso (i) a superfície abstracta das coisas, então manejáveis por uma aritmética simples ou por um método e noções claras: dispõe «as complexidades da vida humana numa ‘forma tabular’». (Nussbaum, 1995: 1) Em seguida, o «cálculo» que circunscreve a superfície das vidas para colar o plano delas numa página sem profundidade (ii) confronta-se com um peculiar contar pelos dedos (coisa corporal, analógica, «didáctica») que exibe a desadequação da contagem ao modus vivendi. O que os dedos contam é o que as «noções» julgam infinitamente fútil; e contar pelos dedos deixa a vida no seu andar para cá e para lá. A lógica não é o árbitro do diverso. Não há um árbitro do diverso. Na forma da lógica, o conceito é desviado para clown a cuja muda e inexpressiva causticidade — proveniente da sua mobilidade e da sua insensibilidade ao contexto — nenhum jurídico nem nenhum costume podem opor reserva e seriedade. Há costumes, há pessoas; pessoas e costumes improvisam jurisdições. A indiferença da forma ao conteúdo torna-se, como quem diz, justiça poética exercida sobre os encadeados mecânicos do «mundo» — e sobre o sujeito que se presumiu autofundado e, que, em boa verdade, se refugiou na poesia que lhe acenava, talvez, com a sua condição de coisa lírica. Representações segundas em Adília (pastiches, paródias, citações com autoridade, sem autoridade e desautorizadas, redução do ícone ao grafito, tradução da obra de referência num poema que se fica pela epígrafe, o poema como comentário «filológico», etc.) não envolvem nostalgia. A nostalgia como recurso «meta-psicológico» de onde se extrai uma arte (um ideal) não acontece em Adília. A «pessoa» evita a melancolia que alucina um todo (orgânico) onde antes estivera (mas já não está) ou uma tradição ou a composição racional. Põe em causa a subjectividade excepcional e não empírica que funciona como uma Causa Transcendental. Nem centro de uma intimidade onde se originam formas únicas, tão orbiculares e rematadas como ela, nem o «eu» distinto produzido pela elegia manhosamente magoada.O estado segundo das representações invadidas pelo pormenor impertinente contraria a lógica da representação enquanto representação da lógica. A poesia não é aqui a encenação manicurada sobre o «eu» da apropositação, da proximidade e da Voz, dos pares conceituais (forma-matéria, sujeito-objecto…) que são o nocional imaculado e colocam ao dispor do monólogo «uma mecânica conceptual, à qual nada pode resistir.» (Heidegger, 1991: 20)

CAPÍTULO VII
A LÓGICA DA BATATA

É extraordinária a persistência do reconhecimento impensado da poesia como estética — forma, bom gestalt e boa forma — , que permite a sua utilização como transdutor estético das outras artes (cf. os tropos ekphrásticos em torno do Museu Imaginário), e muito à margem de transformações ocorridas nessas outras artes. No seu reduto estético, as mais das vezes é transcendência e graça; tanto a construção verbal como a oração elegíaca rodeiam uma Ideia, um Logos. São o Som do Sentido, his master’s voice.(Marta Pulgar)
Em A Pão e Água de Colónia, livro que abre com o détournement de Chomsky (da sua gramática lógica) que «bifurca» a diferença entre uma arma verdadeira e uma arma de sabão (O Inimigo Público nº 1 de Woody Allen?), o «cogital» e o seu «conceito» são desfeitos e refeitos, jogados entre palavras. Em vez do «ego» que seria o fecho de abóbada do conceito, o conceito como um «brinquedo», uma paranomásia insignificativa (l-egos/egos), a que me proponho acrescentar o topónimo Selfridge. Consente-se que a personalidade exista por condições de matéria, sem «egos», examinável como um conceito decomponível em peças (cientificamente) e não como um pleno nocional imaculável (filosoficamente). Assim, sete rios entre campos mais tarde:
A Classificação Colonfoi inventada por Ranganathannos anos 20ao ver um mecanonos armazéns Selfridgeem Londresassim um conceitoé um brinquedodecomponível em peças Legospersonalidade matéria energia espaço e tempo(não consta que Raganathan tivesse problemas de egos)(Sete rios entre campos 62)1
Como se sabe — o que até torna a datação pertinente —, problemas de egos estão no centro das poéticas modernistas, a título de piedade «orgânica». À redução científica do conceptual acrescenta-se, aliás, uma lição ainda científica. O que a ciência, esse inimigo jurado da «poesia», submete a decomposição no domínio dos conceitos apresenta-se na vida como mistura; a mesma pureza não se obteria, se alguma vez se obtivesse, sem custos de entropia. O «eu» e o «tu» tinham afinal a forma impura «outra pessoa», que somente o «livro» poderia acolher na sua nursery, de resto não muito longe de uma casa de passe recorrente (capaz de acolher, porque as gentes são clientes e provisórias, e o mundo um vale de lágrimas que é um vale de risos). O puro conceptual não guarda nenhuma coisa consigo, e num invólucro de brancura; por mais que amavioso e baixinho chore, um «eu» não introjecta uma perfeição tal que lhe permita idealizar-se redondo mesmo. Tudo é diverso entre diversos e a posse (o egoísmo) uma realidade que se aprende partilhada:
depois ouvimos falar na entropiaaprendemos que não se separa de graçao doce de framboesa do remédio misturadosé assim nos livrosé assim nas infânciase os livros são como as infânciasque são como as pombinhas da Catrinauma é minha outra é tuaoutra é doutra pessoa.(O Decote da Dama de Espadas 12)
A «entropia» é de resto uma das figuras da obra de Adília Lopes. Dir-se-ia que num primeiro momento a «entropia» transforma o «eu» em (outra) «pessoa», ou o vitimiza em «bifurcação sucessiva» — no caso de A Pão e Água de Colónia, em Sr. de la Palice. A fatuidade do ego é derrotada pela inanidade máxima do conceito:
o Sr. de la Palice foi uma vítimada entropiapor isso mesmoquanto a mimas suas máximas são as mais radicais.(A Pão e Água de Colónia)
A Adília cristã virá a afirmar juntamente com a entropia a neg-entropia, adequadamente contextualizada com a redefinição do ego cogital em termos de desejo, trocando ainda ou mudando de condição «pessoa» e «história», inocência e experiência, verdade e autoridade, e a apetência do conceito pelo ser. «Histórias» terão o fim que é agora a sua lei de consequência, seta de tempo e lei leteia; pelo desejo, «pessoas» são eus que não cessam de ser; ainda que mais experiente do que «logicamente» poderá ser, a «pessoa» será sempre verde (é sua condição ressuscitar); a frágil sageza comum consiste em máximas de ocasião que são coeficientes erráticos de correcção de acções e que, em princípio, autorizam qualquer boca; não há ser sem estar:
A segunda lei da Termodinâmicaa lei leteiaa seta do tempoa serpente do Paraísoa entropia existemas também o Novo Testamentoe as sete artesexistempara a contrariar(desejo, logo soue eu não acabo de ser)(Florbela Espanca espanca 10, sublinho)
Mais afirmativamente:
Estou verde como o mar ao meio-dia. Estou contente. O mundo não acaba. A entropia não aumenta sempre porque o mundo não é um sistema isolado. Acho que do outro lado está Deus. O mundo e Deus comunicam. (Irmã Barata, Irmã Batata 19)
Sagrado e vulgar como a vida, o «eu» é afirmação e negação e não um protesto de candura:
Sou e estou. Eu sou eu e a minha circunstância, como disse Júlio Iglésias. Eu não sou eu. Eu sou aquela que não sou. Não, que disparate, eu sou eu. Já morremos todos e já ressuscitámos todos. Agora há que viver a vida.
O Diabo é aquele que diz «Eu sou aquele que não sou». Sou eu às vezes. (Irmã Barata 22)
Na primeira Adília, por um lado, a clausura conceptual era transformada em insanidade conceptual, adstrita a duas figuras da «entropia» — «pessoa» e opinião (Sr. de La Palice, «quanto a mim») — que não consentem que se diga «eu» sem que eo ipso a mesma «entropia» seja corroborada; e, por outro lado, em «mistura», que, não consentindo a pureza e obrigando à «infância» experiente e ao «livro», não podia resgatar-se de graça. Na segunda Adília, por obra das «sete graças» e da graça, o «eu» que é desejo rompe a clausura conceptual. Mas esse «eu» é agora marcado pelo género sexual. O «eu» que não é pretexto conceituoso é feminino; Adão é a figura narcísica do conceito, o sujeito cogital que diz não a Eva, e não sem analogia com o diabo:
os homensque escreveramo Génesisnão pensaramque Adãoem vez de saudarEva com um grito de júbiloa mandasse emboracom sete pedras na mão.(Clube da Poetisa Morta 24);
Adão também se reconheceu no espelho. Mas Adão era Narciso e sabia que era Narciso. Achou imediatamente que no Paraíso fazia falta a Fundação Adão. (Irmã Barata, Irmã Batata 18)
A obra é muito sensível a uma incongruência não remível nem pelo «eu» nem pelo «conceito». Parece ser possível e conveniente substituir o rigor pelo à peu près. Recorro a uma história ultrajante, da primeira fase:
Minha avó e minha mãeperdia-as de vista num grande armazéma fazer compras de Natalhoje trabalho eu mesma para o armazémque por sua vez tem tomado conta de mimuma avó e uma mãe foram-meentretanto devolvidasmas não eram bem as minhasficámos porém umas com as outraspara não arranjarmos complicações.(A Pão e Água de Colónia, sublinho)
A fábula tem inegavelmente um sabor kafkiano, e logo pelo pequeno funcionário cumpridor que existe pela organização e se obstina numa espécie de greve de zelo que presume o sentido no sem-sentido e por isso mesmo o compromete «subjectivamente». Nas costas do conceito que manda contar até Um, aparece uma avó como figura do excesso — como nos diz o texto, Mãe há só uma (e quando é uma, não é a Mãe) —, e aparece a empresa que se torna a casa burocrático-metafísica do sujeito, cumprindo aproximativamente os prazos de garantia do Um.A ideia geral parece ser que o mundo transborda de «observáveis». Em A Pão e Água de Colónia, o que excede é da ordem do pormenor que por norma sobra à definição do todo pelo conceito, e que, quanto mais mínimo e incongruente, mais contesta no mundo a noção de todo. Há uma «exactidão» no pormenor, dispensável na transcrição de um conjunto em «forma tabular», que é exactamente sem sentido e sem conceito (mas não inefável); e, dado que o pormenor é solidário de outros pormenores, tão indefinidamente «parafraseável» como uma metáfora. O pormenor é contingência e introduz um desarranjo na consequência das histórias. É uma versão menor e desviada da questão filosófica «porque é que há ser em vez de nada?». A epígrafe do Poeta de Pondichéry:
Porque é que o mau poeta deve ir para Pondichéry e não para outro lugar? Porque é que os seus pais são joalheiros? Porque é que juntou 100 000 francos? E porque é que passou doze anos em Pondichéry? Não sei explicar. O que me atrai é precisamente isto: Pondichéry, pais joalheiros, 100 000 francos, doze anos (O Poeta de Pondichéry 11)
Veja-se também as «Microbiografias», e esta por todas:Um quadro de Ensorque tinha sido roubadoestava enterrado a 30 cm de profundidadena praia belga de Mariakerke.
O que teríamos no «mundo» seria da ordem de um excesso nada enfático: efeito sem causa, crença sem fundamento, conclusão sem premissa, acção sem motivo. Na melhor Adília, disjunção e incerteza regem o sentido da vida, sem restrições à presteza enunciadora. Em «La Boîte à Tokyo», a demanda conclui-se com a integração do título no poema pela rima e não pela razão. O que o título promete salda-se numa decepção sage do sentido. A moral da história coincide com uma história que falha à conclusividade:
LA BOÎTE À TOKYO
Aquele que a procuraainda não voltouou porque ainda a procuraou porque já a encontrou.
Esta caixa, se caixa é, pode ser a que (re)aparece em Irmã Barata, Irmã Batata. Aqui, a simplificação pela «lógica» evidencia a ausência de certeza (e por isso, em certo sentido, torna evidente a entropia, na medida em que esta seja uma incerteza que não decresce):
Há uma caixa em Paris que tem uma pulga dentro. A caixa é rectangular e está dividida ao meio por uma divisória. Pode-se separar a caixa nas duas metades sem abrir a caixa. A caixa é opaca. A pulga ou está numa metade da caixa ou está na outra. Separa-se a caixa nas duas metades. Leva-se uma metade para Tóquio, deixa-se a outra metade em Paris. Agora a pulga ou está em Paris ou está em Tóquio. Há 50% de probabilidades de a pulga estar e Paris e há 50% de probabilidades de a pulga estar em Tóquio até se abrir uma das metades da caixa. Mas, quando se abre uma das metades da caixa, não há a certeza de a pulga estar em Paris ou em Tóquio. (Irmã, 17-8)
Para a segunda Adília, a «lógica da batata» funciona, porém, como o fizeram os enunciados pirrónicos do cepticismo ante Descartes. Como igualmente supunham uma relação de consequência entre mundo e Deus, ao invalidarem o mundo validavam Deus. Continuando a permitir o começo abrupto que significa a primazia da acção ou do evento sobre a explicação («A minha tia Graça atirou-se de um 60 andar abaixo. Morreu.», Irmã Barata 7), antes de Deus a batata da lógica permitia validar a ausência de conclusão face aos eventos do mundo (a dissociação entre intenção inábil e o objecto irregular) ou a conclusão fraca e o silogismo menor que por norma debilitavam toda a moral, e logo a das histórias que seguem lépidas e não esperam por ninguém. Os eventos e objectos eram objectos e eventos fingidos por linguagens; sem grande sentido os cuidados de precisão; e fátua ou tola (inabilidade trágica, se há personagem) a conclusão para que se precipitam linguagens e histórias. Ana Bela é nome de guerra; a guerra que se prepara é uma marca de impermeáveis, os quais, e tanto pior para as seguranças da virtude, podem fazer a felicidade de alguns:
a Ana Bela é que já deve ter descobertoque os impermeáveis Parabellumnão fazem a a felicidade de toda a gente.(Um Jogo 21, sublinho)
Antes de Deus, mas, em boa verdade, nunca muito longe dele, a «lógica da batata» transformaria num «tabique» aquilo que «separa o horror / do resto» (O Peixe na Água 18); e, expondo à vida, sublinharia a «ouro» a fractura do «espelho». Aí, crer depende de viver; vem depois de um arte de viver em desastre e sem estro:
Reconciliada com as memórias
«C’o largo Mar de tua Graça imensa?»D. Francisco Manuel de Melo«Antes da confissão»
Eu no espelhocolada com colamais bela do que dantescomo o prato Zenque tem as fracturassublinhadascom ouroobra da fortuna boa e máobra da falta de afectoe do afectoNarciso e anti-Narcisoviver para crer(O Peixe 27)
Ou:
A vida, Augusto Comte, é um mar de miosótisa vida é andar para cá e para lá.(Clube da Poetisa 11)
Ou ainda:
Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro.(Irmã Barata 14)
Não se reconhece no que a vida não garante os termos e condições por que passou entre nós a glorificação estética do poema: «limpo nu liso inteiro»? Não é essa definição repraticada pela ausência de vírgulas, a mimar a superação virtuosa do enunciado (do lego) pela enunciação transcendente (do ego)?A reconciliação do pensamento com a vida (mar de miosótis) começa pelo reconhecimento da vida como errância sem sentido, deambulação alheia ao conceito directivo e ao ego «director de consciência» (andar para cá e para lá). Faz-se também pela aceitação do «eu» como «espelho» fracturado (obra da fortuna má e boa). Num mundo agora reconhecido barroco, não há lugar para a pureza conceitual e para imagens de favor3. Está saturado de «pessoas». A vida é um ter a ver do cu com as cuecas:A vida é barrocacoisa entre moléculasé claro que o cutem a ver com as cuecas(«Nota da Autora» a O Regresso de Chamilly)Um espelho limpo liso nu inteiro é o que separa Eva e Adão:
Deus acabou com Adão, com Eva e com a treva. Partiu o espelho ao meio e pôs as duas metades em frente uma da outra, paralelas uma à outra. E assim deixou o Paraíso num Inferno. (Irmã Barata 18)
Figura da resistência ao sentido e à antropomorfização do sentido como «eu» e «conceito» é a «irmã barata». A barata integra o livro nursery, e como irmã (salto extraordinário sobre a inexpressividade e o não afim, de que beneficia igualmente a batata), justamente porque não é uma forma «eu». O que a barata é, é o que da barata se ignora. Escapa-se para um à parte todo ele non sense: «(era uma vez uma barata que fazia operações: tirava da barriga das pessoas tostões)» (Irmã 16) Está já nos romances de A Dama de Espadas; foi resgatada, note-se, da Autobiografia Sumária de Adília Lopes, que consistia nestes três versos:
Os meus gatosgostam de brincarcom as minhas baratas(A Pão e Água de Colónia)
Na Autobiografia sumária de Adília Lopes 2, escreve-se esta correcção que é atenção ao território, ausência de idolatria do natural e de ingenuidade quietista:
Não deixo a gata do rés-de-chão brincar com as minhas baratas porque acho que as minhas baratas não gostam de brincar com ela. (Irmã Barata 12)Adiante acrescenta-se uma chegada à maturidade (e é a Autobiografia sumária de Adília Lopes 3):
Os meus gatos já deixaram há muito tempo de brincar com as minhas baratas. A Ofélia tem 12 anos, seis meses e sete dias. O Guizos, segundo o Dr. Morais, tem 9 anos. Entretanto gatos morreram, gatos desapareceram. Estou a escrever isto no computador e não sei do Guizos há três dias. (Irmã Barata 21)
A barata, digo eu — que gosto de dizer coisas —, por inexpressividade refractária a línguas e histórias, apresenta-se equipada para recomeçar o Éden, na ausência de bem e mal, de perigo e de pureza:
Depois do holocausto, a barata Eva e a barata Adão comerão da maçã. Mas isso não será pecado. E uma humanidade de baratas viverá feliz para sempre num Paraíso sujo de restos de pessoas que não será sujo para ninguém. (Irmã 16)
1É preciso transformar a lógica em irmã e batata: «A lógica é uma batata. A gramática é lógica aplicada. a=a não interessa nem ao Menino Jesus. a=b só tem interesse porque a não é bem b. Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa. Partir de a=b para chegar a a?a. Reduzir ao absurdo. Cante Kant. Conte Comte. O verbo ser não é igual a ser igual.» (Irmã Barata 16)
2 Esta poesia é materialista, e tanto mais quanto o seu materialismo não se resgata por um determinismo. A aproximação à certeza «pela metade» mostra-nos vivendo num universo material, estatístico, descontínuo, a que lançamos remendos de continuidade: Adão e Eva, cadela e cão, o mar verde ao meio-dia, e o Deus que está do outro lado. Vive-se no mais (im)provável dos mundos, onde se chega à máxima do Sr. de La Palice e os sistemas ordenados custam informação e energia.
3
«O quem me importa maisé viverpassar os meus diasna ruanos cafés de Madrida dizer tolices» (Lorca)(Florbela Espanca 34)

CAPÍTULO VIII
POP E CONCEITO, POESIA E FILOLOGIA

A poesia de Adília definir-se-á por alguma negatividade? Talvez, mas mais institucional que «ontológica». Possivelmente, poesia para Adília é desadjectivação. Possivelmente, a desadjectivação rima com um alhear-se da «qualidade».(Nathan McWilliams)
Ao circunscrever-se a especificidade desta obra, como pode convocar-se ao mesmo tempo a pop e a arte conceptual, (Silvestre, id.) a agilidade eufórica de Pierrot le Fou, não embaraçada pela moderna floresta de signos, e a filologia pedestre? O maior problema parece residir na aproximação entre representações que afectam a nenhuma distância (o nenhum desdém conceptual) para com a doxa, as imagens, o Kitsch, a indústria, as artes ou a cultura low brow e a distância conceptual que tanto age na rasura da felicidade «retiniana» por proposições como na crítica das imagens (já protótipos sociais ou institucionais) pela letra redonda dos «comentários». Na verdade, pop e conceptual convizinham em Adília por um processo de demoção das modulações estéticas implícitas e explícitas dos «objectos» de Arte (poemas ou outros) e pela eliminação das impressões digitais do estilo. O esburgar de poemas e práticas alheias, como se o que se lhes retira fosse a imagem (presença, graça e qualidade) vai na última Adília até à desmaterialização conceptual do poema. Pese a Kosuth, não se confunda, neste ponto, «conceito», que é lego de proposições, com Ideia, que tem ego e personalidade; nem se afaste este «conceitualismo» da «filologia» e da máxima do Sr. de La Palice, dependente da opinião e da «pessoa» («J. Pinto Peixoto», professor de Adília):Segundo J. Pinto Peixotoo Sr. de La Palice foi uma vítimada entropia(A Pão e Água de Colónia)
A entropia fala-nos de obstáculos a todo o princípio antrópico, ao autor criador, ao seu «eu» e à sua criação1: «pessoa» empírica com nome de Hipólito ou de J. Pinto Peixoto, doxa, axiomas «radicais», mistura impurificável de gostos e noções e sua reequilibração pelo «zero», desvios do todo para o pormenor irremível, substituição «ilógica» do puro pelo à peu près, e «lógica» tolhida pela excepção vulgar e vulgarizada — ou por microbiografias como esta que, se forem haikai a desatenderem o ego, são incríveis porque com humanos e urbanos:
What?
Sidney Rome2preocupa-se maisem salvar o diáriodo que as cuecas.(Sete rios entre campos 29)
Correlativamente, a poesia de Adília assume-se como uma muito curiosa inquirição filológica, de que faz parte a «linguística histórica».Num aparente propósito de desbabelização, a última Adília — «Babel foi resgatada / pelo Pentecostes / e pela linguística histórica» (O Peixe na Água 38) — recorre à mais humilde das ciências humanas, e a mais científica, não obstante: a filologia. É obviamente também uma filologia de recurso, apesar de marcada pelo Pentecostes, que estabelece afinidades com a proposição, ela mesma atarantada pelo rigor, ou com a mais estranha sabedoria das nações, não raro emendada ou simplesmente mimada: o cu tem a ver com as cuecas; para escrever / é preciso / dinheiro; quando a vida / é madrasta / a arte não basta; uma mosca / é ascese / sete não / é legião; não há / siso / sem riso; quanto a comentários / a poesia e a menarca / são parecidas, etc., etc., etc.A linguística é unilateral. Enunciados são enunciados, frases são frases, palavras são palavras; o que anda pelo mundo como sentido confessa a sua natureza primeira de sentido. A infatigável unilateralidade que não interpõe diferença — ou seja: arte e transcendência — entre a «poesia» e o «facto» acerta o passo não apenas com a redução da poesia ao poema e do poema a enunciados «universais» (sujeito/complemento/verbo), mas ainda com uma autodeprecação da arte, que é bem ostensiva. Não supridos pela exclamação ou pela interrogação, e carenciados de superioridade sobre o «mundo», os enunciados não podem fazer menção de o adquirir pelo gosto ou de o merecer nobremente pelo trágico, se não por muitos epicédios. A mesma rima rica é mais um índice de pobreza. A proposição bronca consegue, todavia, entrar num dos lugares literários mais restritos e de maior autoridade:
a minha caraé uma caraçaque o tempo-traçatraça(Sete rios entre campos 81)
Extraordinário logo ou grafito que se sentou, cruzando a perna, sobre duas figuras etimológicas (cara / caraça; tempo-traça / traça), uma das quais é uma metáfora e uma palavra-mala (ou maleta, em bom rigor). O som (rima emparelhada em a, b, c e d, aliteração e paranomásia) não faria aqui, parece-me, as alegrias de um Jakobson; é um palhaço pobre que comete indignidades sobre o Sentido, palhaço rico, devendo ainda responsabilizar-se por um final de lengalenga: «o tempo traça traça».A «linguística histórica» lida com a entropia que afecta a língua. A sua compaginação com o Pentecostes faz destacar os limites muito «humanos» e muito «empíricos» deste campo de saberes. Quando restitua a origem dos usos que face a esta aparecem como «erros», não pode eliminar os resultados: acrescentam-se a todos os outros que configuram o nosso estado de «confusão». Os usos são como restos da Etimologia — do Etymos Logos —, que escaparam a um qualquer Sentido Primordial. Todavia, se não são informação pura ou puro sentido cogital, se as suas lacunas não são remíveis pela Lógica ou pela Poesia Especial, se não fazem nada de semelhante a um todo estruturado, são em contrapartida muito seus o «anacronismo», o «surrealismo», o ter a ver do cu com as cuecas, e também, embora possa não parecê-lo, a funcionalidade das peças lego. São eminentemente aproveitáveis e sentido imanente. Veja-se a tradução errada do «liber» por livro, num verso de Virgílio:
Seca-se o livrono alto do ulmeiroo anacronismoproduziu o surrealismomas não é sóuma má tradução(…)acham que um verso é pouco?quem não o aproveitaé mouco(Sete rios 71)
Aproveitar um verso é a expressão pertinente. A própria Adília não apenas aproveita um verso; ir-nos-á dizendo também que dessas coisas chamadas poemas não se aproveita mais do que um verso; que o poema é aquilo de que se aproveita um verso. Ela reduz o poema, e isso nota-se muito bem na apropriação dos versos de outrem, a algo como étimos que são agora indiscerníveis do resíduo.No grande empreendimento de desadjectivação de Adília (sobretudo, da última) podem detectar-se dois modelos, frequentemente interconexos: o da redução do ícone ao logo e o da microbiografia.No primeiro caso, aproveitar-se-ia da forma ‘resumo’ a lição da evidência e da necessidade a que se chega por um processo de desbaste. As mesmas necessidade e evidência dotam o resultado, descarnado, de uma imagem de irreversibilidade.No caso da microbiografia, o resultado é uma olhadela lançada sobre o aleatório produzido por um «mundo» que não necessita de uma causa, um motivo, uma crença ou uma premissa para produzir resultados. Uma «sucessão estocástica» produziu uma regularidade sem Necessidade interna nem externa; eventualmente estabilizou-se, mas não como enviada a um destino por uma vocação de valor. Não sendo achados, por isso que foram achadas e readymades, as microbiografias parecem responder por este efeito zen: o Autor troca os dons do génio (e mesmo os da loucura) da criação e do métier pela moeda de pataco da «pessoa», da irracionalidade sem profundidade estética, e da «mania» incurável ou irreversível. Os dois casos revelam muita afeição pelo banal, que, porque em poesia estamos, não me parece poderem ser transfigurados facilmente por um ambiente de arte e teoria. Tenham-se presentes os poemas exemplares. Em rigor incomentáveis, sem pernas para andar, nem asas para voar (esta poesia é das mais materialistas que conheço, e nada icárica), os poemas resultam de movimentos de acaso que viriam já na esteira da desordem.Se considerarmos que um resumo da «Pont Mirabeau» não é nada de adventício, pertencendo antes, como querem van Dijk e outros gramáticos textuais, à estrutura profunda de onde o texto se gera, o poema de Apollinaire é centralmente o resumo que dele nos dá Adília; se considerarmos o leitor comum (todos nós, em princípio), conviremos que na sua retentiva o poema vive como informação «degradada», banalidade muito igual à da impaciente tradução de Adília, e que é todavia o seu caroço duro, posto convide ao erro de gramática e logo ao equívoco obsceno: «os dias vão-se / eu não». Deste modo, o texto com suas modulações e implícitos artísticos revela uma absoluta descontinuidade com o poema que existe por esse caroço que passa a ser também o resto e o lixo quotidiano que a entropia nos dá hoje. Em suma, a passagem ao muito provável mundo onde em vez de Milton se tem a casa da passe, em vez do Poema o seu logo, em vez da transfiguração o banal, funciona como uma crítica doméstica de todo o jogo estético onde uma libido reconhece o melhor dos mundos possíveis: um mundo ilusório de continuidade e de reversibilidade que Adília reserva a Cristo e a Deus. Adília produz resíduos, logos e étimos, como filha do tempo; e aproxima-se de Deus e de Cristo através do exercício filológico-poético do remendo ou da recuperação de desperdícios.Em geral afectadas à citação sem autoridade, as microbiografias dão muitas vezes conta da obstinação da «pessoa», definida pelo que faz de forma mais ou menos maníaca e rigorosamente inútil. Eis duas numa só:
Dois casos citados por Christian Lacroix
Uma freirapassou a vidaa passajartom sobre tomo mesmo aventalazul escuro
Um funcionário públicocoleccionoua vida inteiraa publicidade que lhe metiamna caixa do correio.(Sete rios 63)
Estas peças que colocam a «microbiografia» nas imediações do «humor em quotidiano negro» (Helder, 1979: 94 e ss) mostram o que sem elas dificilmente transpareceria nas restantes e apesar dos eventos encontrados a descoberto de um sentido e de um porquê: a resposta ao Sentido por uma greve de zelo «metafísica», a interrupção associal da biografia, efeitos de assinatura (de mudez tão radical como a das baratas) que suspendem o império da «terceira pessoa do pacto social». (id.: 13)O que aconteceu não marca encontro consigo mesmo, aí onde haja alguma fala e alguma lei; em rigor, não aconteceu. O trabalho da freira é trabalho negativo. Por uma vez, o original (o avental) é indiscernível do — é coberto pelo — aproximativo (o passajado). Pode suspeitar-se que há-de chegar a ser o que é quando inteiramente substituído. Por um milagre de filologia, o triunfo da entropia restitui o original. Na microbiografia e no logo, a «pessoa» antecedida pela experiência que a desloca na ordem dos actos simbólicos assume-se inércia do inerte e comete algo como o crime que consiste em ser «o contrário do nome»; (id.: 87) já nos romances cómicos «usa o contrário do nome».Estes dois alquimistas (que eu proponho equivalentes dos «mongolóides» de que Adília diz gostar) são o poeta, que não é portanto o Ego Transcendental mas a própria «pessoa» como «desperdício pessoal». Aquele que no Sistema Grande dos Discursos se identifica ao déchet irrelevante, irrelevável, insimbolizável, santo, santhomem-sintoma, objecto pequeno a. (cf. Aubert, 1987; Lacan, 1994)
1 Contrario um tanto a autora e a sua fé nas sete artes.
2 Actriz de cinema que nunca subiu muito acima do estatuto de starlette.

CAPÍTULO IX
NOVA CRÍTICA DOMÉSTICA DOS PARALELEPÍPEDOS

Na segunda fase sobretudo, esta poesia é como música que fosse como mobília (John Cage)(Kathleen Gómez)
[Encurtar as formas de escrever] ensinou-me duas coisas. Primeiro, a formular ideias de maneira aforística, que não requeriam continuações assentes em razões formais; segundo, a ligar ideias sem usar conectivos formais, meramente por justaposição.(Schoenberg)
O pacto social é um esquema de transferência de pagamentos: brincos pelas orelhas, bordel pela nursery, emprego pela mãe, ouvidos pelos olhos, lego pelo ego. Por isso, bodas não rima com fodas.
(Fernando Coimbra)Há na obra de Adília um regresso contínuo a Adão e Eva, continuamente frustrado. O Par distrai-se e trai-se por histórias, a não ser que a história seja de fadas (ou de baratas). Aí, o Par multiplica-se como Éden, tomando a gramática à letra e ultrapassando a diversidade: «a princesa e o chinês casaram-se e tiveram muitos filhos e muitas filhas, muitos animais e muitas plantas.» (A Bela Acordada 17) Mas, em geral, o que acontece é deste tipo:
O homem e a mulherdeixarão pai e mãepara seremuma só carnemas por causado assado queimadodescompõem-secospem um no outro.(O Regresso de Chamilly 4)
O falso começo do Regresso de Chamilly é mesmo uma paródia sacrílega da criação da mulher. Chamilly encontra Mariana a dormir debaixo de uma alfarrobeira e:
arranca-lhe uma costelae faz com elauma flautae do crânio de Marianafaz uma cabaçacom que bebe águado poçoque há no meio do claustroChamilly transforma-senum sapo(O Regresso 6)
O par acabado de reunir-se não é apenas separado pelo narcisismo de Adão. É sobretudo separado por histórias. Torna-se histórias e é parasitado por elas, como se a relação se achasse já na Origem socializada. Uma vez mais, toda a «juventude moral» é antecedida pela «experiência»; no que diz respeito às histórias em que estão, as «pessoas» equivocam-se, como se postas num jardim de caminhos que se bifurcam.Adoptando uma certa atenção pessoana à contingência, dir-se-ia que as histórias são mais do que o mundo em que existem. As «pessoas» não cessam de fazer histórias, tal como as histórias não cessam de fazer «pessoas». Nas histórias a consequência enlouquece, entra em roda livre, e cada história é mil e uma. Quem diz histórias, dirá associações de ideias. As «pessoas» nunca estão na situação em que estão, i.e., nunca estão consigo mesmas. O fim da história não é o lugar delas. Assim, não só «Mariana atravessa / o pomar / a sonhar / Chamilly voltou / e é tão bom / tê-lo de volta / que não pode estar / muito tempo / ao pé dele» (O Regresso 8), como «há uma passagem / subterrânea / como nos romances / que liga / castelo e convento.» (O Regresso 22) Uma vez que Chamilly é ternamente Milly, o par é assediado por Milly Possoz, e apesar da Presença: «Mais que / todas as cartas / como nenhuma / carta / és tu Milly / em carne e osso / ao pé de mim / (Milly Possoz também / está muito comovida)» (O Regresso 19) Um sonho de Mariana mostrar-nos-á, enfim, a dessacração do Par por outro par igualmente com muita história: Pedro e Inês
que dez anos de cavaquismodeixaram sentadosde cócorasà beira dos túmulos abertosa comer deliciosaspassas de Boliqueime.(O Regresso 20)
Este peculiar regresso ao Paraíso, que reescreve por garatuja ou grafito a generalização proporcional que arranca a sociedade da família e a nação do par, e por isso se entretém com emblemas da história nacional (e talvez parodiando A Margem da Alegria), falha mais do que uma apoteose. Enquanto consenso estético — quadro final de revista —, o par auxilia-se com a bandeira e com uma arte da ilustração anterior ou marginal à Arte. Como é diferente o amor em Portugal:
Milly Possoz pinta-lheso retratoela debaixo da alfarrobeiraa responder-lhe Millyele debaixo da alfarrobeiraa perguntar-lhe Mercio fato de Chamillyé verdeo hábito de Marianaé encarnadoe sobre os doiscai nupcialo céuas cinco quinasmais abaixoo dosselque é a copa da alfarrobeirada cama que é o chão onde se dãoEva e Adão cadela e cão.(Idem 21)
O envelhecimento da representação do par originativo a quem foi dado um mundo para criar participa decerto do envelhecimento a que a obra de Adília submete o estético, (cf. Diogo, id.) em geral substituído por ou posto em continuidade com figuras de um consenso social ultrapassado. Assim se mostra o mundo desprendido da chamada História e inteiramente complacente face a desígnios estéticos que tanto serão como «histórias»; não sem alguma reversão, acontece ainda que projectos ético-políticos são transformados nos propósitos estéticos que afinal seriam, e postos a ridículo, decriados e descridos. Estes deslocamentos assistidos pelo clown também não poupam os emparelhamentos de Adília, muito susceptíveis à «associação de ideias». Em qualquer caso, é agora cada vez mais visível que estas figuras tornavam muito peculiares as utopias de sessenta, que nas gentes eticamente avançadas falham à letra por que deveriam ser tomadas.Exemplar no processo é A Continuação do Fim do Mundo, pois se trata de uma utopia doméstica — «fodas e bodas» —, assente no par antecedido pela «experiência» e ainda assim invulnerável a todo o qui pro quo. Sem vestidos, a fim de que não haja agora «acasos / no encontro e desencontro / das pessoas» (Continuação 79), o par persevera na utopia apesar dos erros que são, e do mundo que também é erros. Apodera-se da consequência de uma história surda a «realidade» e a «razão», desviando-a do mundo para a família tão irregularmente constituída. Posto tudo comece a posteriori, vá em consequência e de mal a pior, o casal afirma pela sua própria existência a bondade do mundo, envergonhando Pangloss. A perspectiva estabelece com certeza algum acordo com a noção de sessenta que antepunha a transformação interior à exterior e como condição desta — «a revolução ou é / de trazer / por casa / ou não é» (idem 78) —; mas vive ainda de uma noção mítica de exogamia radical, tal que a nova sagrada família, por assim dizer, não se constitui na família, mas no mundo (o que porventura vale pelo expelir de si, como de uma abundância, um mundo renovado). Adília emparelha com Jena, a princesa com o chinês; os filhos serão de todas as cores e etnias, e irmãos de plantas e cachorrinhos. Nenhum sobrevivente, e apesar das provações, porém «viventes» todos (idem 93): «Hércules e Íficles / Amra Fiama e Elisabeth / e o sexto filho irmãozinho / por conceber» (idem, ibidem). Marginando tudo isto pelas figuras do compromisso, o par acasalado dá a norma a uma generalização que vai de uma arte de ajustes à apoteose teonacional, em sucessão agora providenciada. Muito nitidamente, isto que não deixa de ser uma hipérbole cómica configura-se como um processo de assimilação das «ideias» opostas ou diversas que teimavam em «associar-se», fazendo da semântica centrada no par uma semiose dissociativa (como se viu com O Regresso de Chamilly). Se aos «píncaros» se agarra, e por suspeita, o «orgasmo» (a arte é vida por figuração de cumes), encontra-se para este um par (uma paranomásia) no «organigrama» que o mete na ordem dos ajustes, e logo por conotação. O processo suporta a hipérbole e suporta o cómico, que se tornam metáforas apósitas do ajuste. Mas o mesmo ajuste cede por seu turno à hipérbole e ao cómico a sua noção — a ligação das partes pelos cantos, que as asssemelha no interior de uma continuidade, transforma-se na disponibilidade do acolhimento que pode figurar-se num dos temas deste livro: a gravidez. A gravidez torna o livro uma singularidade (a qual fortemente se especula no monstruoso) — «Excuse me! That’s my book» (id. 86) — e as deslocações do autor enquanto «pessoa» definem não só os cantos do «ajuste» mas a origem e o telos, o centro das proporções: «onde me sento / é que é / a cabeceira / disse D. Quixote» (idem 95, sublinho).Tudo é acolhível na a(l)ma que é o livro — aliás, um livro na infância, e decerto mongolóide. A deficiência torna-se eficiência profunda, merecedora da (pro)criação:
A obra de artenão é um ajustede contasé um ajustede cantosde cantos de pedrade madeirapeças de puzzlede cantos gregorianospeças de píncarosorgasmoe organigramaFátimae Aljubarrotaa abóbada não cairáa abóbada não caiu(idem 85-6)
O espaço cuja abóbada não cairá e não caiu — uma engraçada inversão do grand mot do conto de Herculano, como se o salto indutivo fosse reescrito à la Popper — pode ser o útero que abre o envoi que fecha o livro. A árvore da vida, «nua e integral», dispensa «dez séculos / de história», que é de crer que não sejam menos do que lixo (idem 95). Este lixo que se deixa em casa (id.: ibid) com a aprovação da autora, pede-me, todavia, uma visita à casa onde se deixa o lixo. Lá iremos. Estamos, portanto, com os sessenta e as utopias, que os vários détournements de Adília atacam pela sua raiz social-estética, adoptando por exemplo a crítica da dessublimação regressiva, mas não sem ambiguidades. O progresso objectivo não tem correspondência num progresso subjectivo; conduz mesmo, exemplarmente, às tergiversações da «pessoa» e da «opinião». A «pessoa» acha-se quixote inconsequente numa história de consequências: é essa a moral da história, que, de outro modo, não tem moral. Assim, na evolução dos meios de transporte do tarentass para o automóvel Éclair, para a furgoneta Dum Dum e para os patins Bic (e esta história foge já comicamente ao progresso, obrigado à restituição sucessiva do particular — do muito particular —, e por isso como «lixo»), teria deixado de haver «distância» entre o «desejo de sobremesa» e a «degustação da sobremesa». Perdida a sobremesa, que não é já preciso desejar:
(…) as refeiçõescontinuaram a ser repressivase não sabendo o nomedo que comemas crianças não se podem defenderda repressão chamando nomesque não me tomem no entantopor uma apologista do tarentass(Um Jogo 36)
Se os nomes de marcas são histórias que não levam a lugar nenhum, o chamado progresso parece ter condenado à inconsequência os seus opositores, deixados sem regresso, e por naquele acreditarem. Desejar em abstracto regredir, é desejar em concreto o tarentass. Não há mundos sem mobília. O apologista dos bons tempos idos, e nolens volens do tarentass, é como as crianças que perderam a sobremesa por faltas de vocabulário. Não tem o indez defesas contra o objecto que é todo concreto e imediato, e logo totalmente abstracto, como abstracta a garantia de felicidade (e, como vemos, infantil). Mas a moral que estaria no passado está onde está o tarentass, e tantas coisas mais.Analogamente, a obrigação contemporânea de ter prazer é posta na perspectiva de um ridículo trágico, por hipérbole: «o massacre quotidiano que é a foda obrigatória, o perder a virgindade obrigatório antes dos 17 anos, o orgasmo, os super-bebés» («Nota da Autora» ao Regresso de Chamilly) justifica a defesa da vida com mongolóides, do pai pródigo e da mãe pródiga, que não são sem serem todos tarentass ou patins Bic. Patins Bic e tarentass são moralmente inconclusivos.A equação de ‘fodas’ com ‘bodas’ (e sem prejuízos de prodigalidade) surge assim no centro de umas propostas de vida que não se podem pensar sem ela; é insistente a sua presença nas axiologias contrárias, que devem, então, considerar-se «reactivas». De facto, o repúdio do Regresso de Chamilly, considerado «marialva», mostra que as utopias de sessenta continuam a dar a norma ao Bem — são elas que permitem divisar o sentido delas como sendo afinal o seu contrário (foram elas que identificaram como marialva um ethos para repúdio)1. Elas são a mobília (ou o lixo) do mundo e logo o seu Mal e o seu Bem; e se a «cabeceira» é determinada pela posição da «pessoa», a norma da posição implica os deslocamentos. A autora que é «pessoa» — «e faz e faz-lhe / muito bem» (id. 95) — não só acha vários lugares para cabeceira, como se senta à cabeceira em várias posições: de frente, de lado ou de costas. A mesma cabeceira é por vezes determinada por uma pirueta. Sem explicação, mas com patins Bic ou camionetas Dum Dum; menos em ajuste e mais em livro(s). A cabeceira pode ser inexpressiva e mesmo boçal. D. Quixote faz cró. O livro acolhe, é a unidade, mas não é o Um.Daí que inferir Deus das linhas tortas seja sempre inferir Deus por linhas tortas; daí que os mongolóides (onde incluo heróis de microbiografias, cães, baratas, batatas e osgas) sejam abordáveis não pela «poesia» que preza Deus para Cabeceira, mas pela «linguística histórica»:
Gekko (holandês e alemão), gecko (inglês e francês) é uma onomatopeia malais. As osgas vinham nos barcos da Malásia para a Holanda. O João Dionísio diz que o grito da osga é parecido com o ruído do computador a engolir a disquete. Há dialectos portugueses em que a osga se diz cró. Segundo a Manuela Barros, é o grito da osga em português. (Irmã Barata 21)
Quase obviamente, a osga é posta em sequência com um «eu» (o meu eu) cujo «corpo» não está colocado num fundo brilhante e fresco de céus e montes, e que decididamente não parece ser cogital:
As osgas têm um eu? As plantas têm um eu apesar de não terem cérebro? E as pedras? O eu, um eu, o meu eu, precisa de luz e de escuridão. (Idem 17)
Da primeira para a segunda Adília, é muito sensível uma diminuição radical de «abatage». Perdem-se, por um lado, a ligeireza, a agilidade, a vivacidade, que permitiam «abattre du texte» sem o sacrificar, e por outro lado os dons «físicos» de representação (a «abatage») da grande «cómica» ou da grande «fantasista», que conduz as figuras improváveis da inocência doxástica e da tragédia com movimento, presteza, elegância, pitoresco, facilidade vocal, vivacidade e brio. (cf. Souriau, 1999: 1) Os textos da segunda denotam a falta de qualidade que é própria do «rombo» e mesmo do «boçal». Esta diferença é empiricamente corroborável. Adília, diz quem viu, massacra agora a poesia que recita, debitando-a a uma velocidade inverosímil. (cf. Silvestre, 2000)Esta poesia é agora capaz de fugir à excelência praticando a mais herética das paráfrases: o resumo, que é a norma da própria produção autónoma, dado que os poemas atribuíveis a Adília sem plágio nem cópia são também eles resumidos. Não sem afinidade com o truque muito pop da redução do ícone ao logo, com remoção de todas as conotações, modulações e traços de arte, Baudelaire («à une passante», e topos moderno estudado por Reckert) resulta assim:
Ela passano boulevardcor de Pele de Burroquando foge(Florbela Espanca 12)
Com Apollinaire (e talvez com a qualidade francesa da chanson) acontece isto:
Os dias vão-seeu não(Sete rios entre campos 86)
Com dois títulos da Condessa de Ségur consegue-se esta legenda axiomática, atrapalhada por uma equívoco estranho — a «pessoa» determina duas cabeceiras, uma na «realidade» e outra na «literatura» (o prazer pode ser o da leitura, dado que ‘férias’ e ‘desastres’ são «férias» e «desastres» — títulos de livros):
Só gozaas fériasquem sofreuos desastres(Sete rios 69)2
O tropo culturalista da visitação («A Porta da Casa de Eneias, em Viena») é submetido a idêntica dieta:
Dido no Infernocumprimenta Eneiasé preciso ter boas maneirasem toda a parteespecialmente em questões de Arte (idem 60)
Uma cabeceira, se a há, é duas. O tema é esse mesmo: tem de ficar a parte pelo todo, como se ela o houvera resumido. Dois poemas materialmente indiscerníveis diferem pelo contexto que vai no título («Emily Dickinson» e «S. João da Cruz»):
Mesmo que pudessedizer tudonão podia dizer tudoe é bom assim(Idem 67-8)
E, em suma:
Acham que um versoé pouco?quem não o aproveitaé mouco(Idem 71)
O processo aparentemente não é alheio ao fatum de toda a arte moderna que despreze o exterior sensível (e por isso contingente), buscando antes a Ideia no interior necessário, através de processos de desbaste. Todavia, o obstinado esburgar até ao osso, menos trabalho de ajuste do que labor do bicho-da-madeira, da traça ou de outras «setas de tempo», suporta bem a noção contrária a toda a cabeceira que não seja definida pela posição da «pessoa»: o nó ou o osso, a trave ou o fecho, não são. O resultado de tal trabalho é vestígios, indícios e restos de expressão alheia e externa3. Donde, removida a forma que seria a substância de um consenso, até não ficar mais do que a garatuja, a autonomia vestalizada da «poesia» pode perspectivar-se como sentimentos que evitam ter consequências em acções e não as heresias sociais que tantas vezes presumem ser. Tal perspectiva não depende da forma ‘resumo’ — não é preciso levar a filologia a tais excessos —, como se nota na primeira Adília, onde vigilância e desadjectivação fazem o serviço. O ‘resumo’ acompanha uma fase em que a citação, a colagem, a microbiografia e afins se autonomizaram em pequenos textos e perderam as maneiras (não apresentam os seus respeitos à arte). Não são intertexto dado à reciclagem do passado, nem tornam significativa a paródia por uma abundância inteligente. Foram-se os romances. Definição contra-intuitiva da poesia, e anestética, esta fase da obra define o expurgo do «sentimental» pela remoção da «forma»; implica a realidade no sentido, como se os resumos fossem metaficções. Assim, os consensos estéticos — as boas maneiras que se devem ter em toda a parte — podem ser equacionados como sentimentos «calorosos», que, como o heróico-elegíaco, nascem, em modo dos grandes temas de outrora, da e para a aprovação do público. Mas não é apenas «o almoço do trolha» que nos aparece esteticamente sentimentalizado. O sentimentalismo que rege os acordos, módulo presente em toda a estética ou extrapolável para estética, mesmo a de sublimes (que, também ela, há-de ter um público antes e depois, e logo «pessoas»), não está ausente da obra de Adília. De certo modo, é a sua matéria mais conspícua. Hidra de muitas cabeças, assoma olhos de Bambi em toda a parte. O omnipresente Walt Disney seria reconhecidamente capaz de dar sentido e consenso a contas e hieróglifos obscenos. Nunca se é osga ou barata quanto seria necessário. As mesmas baratas e osgas podem ser uma «nobreza», porque o «humano» não aliena o «humano»:
Não vejo uma águia a fazer contas e hieróglifos obscenosnos filhos de uma corujatalvez Walt Disney visse(O Poeta de Pondichéry 16)
Walt Disney não veria. As garatujas obscenas do amor seriam remidas pelo Bambi, que é belo e bom, sensível e desprotegido. O recente «Big Brother» demonstra como, sob a aprovação do público (de um consenso pré-existente ou chantageado para que exista), é possível vestir a mais obscena das garatujas com «amor», pena e simpatia; como se pode fazer passar a competição mais mesquinha por solidariedade grupal (ela é a solidariedade grupal). E como é possível atribuir à «hipocrisia social», que seria exterior e não «humana» (e mesmo uma estátua de grandeza que o consenso prevê que se possa cuspir) — assim o fez a primeira candidata eliminada — a desaprovação das garatujas. Em toda a obra de Adília, a nobreza e a compostura estéticas equivalem ao sentimento melífluo e à dor falsa: «A dor falsa / cheira-me a valsa» (Sete rios 58). Assim, as deformações da «perfeição enunciativa» vinham acompanhadas de sentimentos vulgares, que, por isso que ninguém aprova ou admira, não podem ser açucarados: inveja, furor mimético, depressão, «rusgas» à «vida privada», «não à das afeições, mas à do amor próprio» (O Decote 34)4.A reprimenda da felicidade como valsa e facilidade belamente expressiva vai tornando esta poesia extremamente contígua do desperdício pessoal: «Tenho mais pena do meu filme, dos meus diários, da minha juvenilia que deitei fora no contentor do lixo do meu prédio do que dos livros ardidos da biblioteca de Alexandria.» (Irmã Barata 22) Substituem-se os recintos e precintos sagrados da Musa masculinista pelos esconsos do ambiente familiar onde a «barata» é encerrada no armário (!) pelas criadas até morrer a «pessoa» que convidava gente para lanchar:
e a barata saiu de lámuito magraa caminhar a custo(O Decote 56)
As baratas, que serão o sujo alheio à noção de sujo, circunscrevem o kit básico da sobrevivência humana — todos os objectos e actividades que corporizam as rotinas domésticas, mundanos e não sagrados, sujos e não «lisos nus inteiros», banais e quantas vezes sem decoro, que se destinam a manter existências e aparências, e que, como forma seleccionada pela história, ultrapassam o âmbito da vida individual e do corpo individual. Neste círculo de familiaridade em que brincam gatos com varatojas, a «barata» que é um milagre de sobrevivência representa a continuidade, humana e contudo não humana, do banal, do baixo, e do sujo que os acompanha5. Nenhum ser humano, ainda quando poeta, escapa à rotina dos apetites e da aparência, assistida por brincos, anéis, botões, alfinetes, bonecas, selhas, ferros de passar, lancheiras, marmitas, termos, livros, estampas, bonecos de chiar e de cochicho, banheiras, camas, mantas, gôndolas em miniatura, rádio, pratos, vestidos, lixívia, juvenilia, poemas esburgados. Porque sobrevivem ao corpo pessoal como forma e o rodeiam como matéria perecível, configuram um espaço moral e estético, entrópico, onde se geram «pessoas» e desperdício, e que só parece poder ser contra-intuitivamente igualado por baratas e outros estranhos alquimistas:
O mongolóide (…)(…)e o atrasado mental (…)(…)duas penas vivas para os outrospobres de espírito ricos de espíritolixo biológico da luta pela vidaganhadoresalquimistas(O Peixe na Água 19)
Neste círculo doméstico, o monólogo transcendental do herói da elegia fica assoberbado com detritos e juvenilia; aproxima-se da rotina, do banal e do «lixo biológico» que a sua alquimia desatende. A barata que se esconde debaixo dos móveis não é o público que devolve afectos. É acções que precedem sobre histórias, experiência, e, mais ainda, sentido e explicações. Não acha a moral sua devedora. A gente deixa-a ser, e isso é caridade e acções (de graças).
Não sei se para as baratas há sujo e limpo: sei muito pouco de baratas. Sei que quando vejo uma barata de pernas para o ar a espernear virada do avesso, a ajudo a ficar de pé. A barata não está habituada a ser ajudada. Estranha. Esperneia cada vez mais. Às vezes trepa-me para a minha mão. E não sei se se sente agradecida. No fim, mal fica em pé, corre muito depressa para baixo dos móveis. (Irmã Barata 16)
No círculo doméstico que em princípio seria do próprio e da sua propriedade, as feições desta não configuram todavia uma transcendência que se não abra ao desperdício: à entropia. Os filhos de Jesus e as filhas de Maria seriam irmãos em entropia; e esta uma imputação caritativa de autonomia, generalizada como um inconsciente. É esta a moral que tiro da fábula anterior. O sagrado e o político assemelham-se, por isso que ambos se encontrariam por uma relação inalienável com a alienação necessária do que é próprio — brinquedos, livros, utensílios. A escrita doméstica é também a topografia de um espaço de estranhamento, que sobrepõe o quarto e os seus objectos à torre de marfim. Entre ambos os espaços há agora a sombra de um motivo. Esse vestígio será porventura a da subjectividade artística socio-esteticamente objectivada, à maneira de O Poeta de Pondichéry:
estão sempre a espiar-mee quando os outros se põem a olhar para mimdeixo de saber como me chamo (Poeta 25)
O que é aqui paranóia, pode ali ser uma verdade. Enquanto sente saudades do quarto «no alto da torre de marfim», a Arte na «cela do asilo» vive no temor daquele que chegará para lhe «cortar as unhas» (Idem). A obra de Adília refere-se a uma poesia a que cortaram as unhas e que não sabe já como se chama (para a poesia que fantasma o quartinho do ego no alto da torre de marfim, esta queda no silêncio ou no modus vivendi não existe).
Arrependo-me muito de ter deitado fora o filme que fiz em 74 com a Margarida Rainha dos Santos. Ela é que segurou na câmara Super 8 emprestada pelo Manuel João Ramos. Filmámos uma boneca de plástico comprada nos Armazéns do Chiado por 19 escudos. filmámos a boneca a arder dentro da gaiola que já não servia porque tinha morrido lá um periquito com uma pneumonia. Reguei a boneca com álcool e deitei-lhe para cima um fósforo a arder. Depois afastei-me para a Guida filmar a queima da boneca sem eu aparecer no filme. Filmou-se a boneca a arder até a boneca deixar de arder por já ter ardido toda. Foi no terreiro em frente do Observatório Astronómico em cima de um marco de pedra.(…)Tenho mais pena do meu filme, dos meus diários, da minha juvenilia que deitei fora no contentor do lixo do meu prédio do que dos livros ardidos da biblioteca de Alexandria. Também tenho muita pena dos meus brinquedos e dos livros da infância que dei à Maria Arminda Duarte da Costa, a criada, para ela dar à sobrinha. Pequei infinitamente. Porque a caridade bem ordenada por nós mesmos é começada. (Irmã Barata 21-2)
O universo doméstico é o grande modelo de apropriação e de apropositação da realidade, contemporâneas da sua mesma obsolescência. Se o universo doméstico tende ao lixo como o mundo tende ao livro, os objectos condenados à caridade — ao começo voluntário da entropia pelo próprio — orientam um desejo que infinitamente difere a diferença entre a satisfação esperada e a satisfação obtida, entre férias e desastres, e entre «no one!» e «no one». A máquina de filmar consome em imagens — imagens que se autoconsomem —objectos consumados pelo fogo. A queima onde se unem o real e o desperdício como ex-votos do próprio adianta-se ao desapontamento do sujeito, que tanto é como os custos em entropia das mudanças de estado a que dar não põe termo, nem o fogo. Remédio? A ordem da caridade, alcançada pela sabedoria doméstica das nações.O lar é História.Na poesia não costumamos saber dos muitos milhões de seres humanos expropriados das rotinas caseiras: os sem abrigo, os que vivem na rua e sob as pontes, ou no lixo e do lixo, os povos sem pátria e que pretendem literalmente regressar a casa. Adília definirá a Virgem pelo brinquedo. O ser humano é um espaço correspondente avesso do brinquedo, como um seio; se a intimidade não é cedida ao brinquedo, o brinquedo não fornece intimidade. O espaço onde se brinca não é decalcado de uma relação sujeito/ objecto; é jogo sem objecto nem sujeito — é (or)a(c)ção. Exterior e interior, lar e História configuram um mesmo espaço que é utópico porque é íntimo. Um espaço de oração — ou seja, de práticas:
Os timorenses, ao fugir das suas casas, levam só as imagens de Nossa Senhora de Fátima, do Coração de Jesus, como as crianças que, para adormecer, precisam absolutamente do urso de peluche que as protege da noite sem a mãe cheia de pesadelos e de medos. (Irmã Barata 21-2)
1 A obra de Adília é uma das poucas onde se tenta uma negociação com as utopias dos sixties, que comprometiam a Arte na Anti-Arte e na vida. Ela sente o carácter traumático desses valores de antanho quer quando por um lado os repudia, quer quando os releva em Cristo e na indignidade das pequenas coisas da esfera privada, quer quando os fazia viver ingenuamente por «pessoas» com modus vivendi e doxa contrárias. Em contraste, alguns usam aqueles valores como sinais retóricos-morais de direitos de propriedade sobre as letras; e o comum dos autores regressa à Arte como à representação poética do poético e à qualidade. Essa poesia usa a melancolia como um depurador de «objectos», digno só das nobres mãos de o autor.
2
De mãos dadascom o meu amigovejo os filmesde Jean Vigo(Clube 34)Debaixo do vulcãoestá o retratodo artistaquando jovemcão(Sete rios 25)Chorochovemas isto é Verlaine(Clube 20)
3 Se o processo fosse deveras pop, ficariam sempre uns «diamond shoes», pois a investigação filosófica sobre o medium desencanta aí o espectáculo — o halo macio da mercadoria — como essência ou forma formante da arte.
4 Adília tenta portanto expulsar do seu Kitsch aquilo que ao Kitsch é deveras fundamental: o Para Elisa, a segunda lágrima da irreflexão segunda que se faz certa das primeiras e da natureza humana delas, inclusiva pelo belo (pelo belo sentimento). Contrariamente ao que parece pensar Lindeza Diogo, Adília quer o seu Kitsch «conceptual». (cf. Diogo, 1998)
5 Compare-se:
The little lives of earth and form,Of finding food and keeping warm,Are not like ours, and yetA Kinship lingers nonetheless:We hanker for the homelinessOf den, and hole, and set.(Larkin, 1990: 207)

Bibliografia
1
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Américo António Lindeza Diogo reescreveu este ensaio a pedido de Jorge Esteves Cunha, que, entretanto, deixou de existir. A responsabilidade pelos resultados, que ambos estranharam, é de ambos e de cada um. No decurso do processo de reescrita depararam-se com posições sobre assuntos diversos, sobre a obra de Adília ou sobre aspectos dela, que nenhum isoladamente subscreveria. Mas a reescrita pôs ainda em destaque elementos de autoria individual indubitável que rejeitam a subscrição, mas não a responsabilidade.Lindeza Diogo agradece aos autores das espígrafes, fazendo suas as obrigações de Esteves Cunha. Demos tempo ao tempo, e possa o tempo dar a cada um o que é seu.Vale, frates.
[Fernando Coimbra]

PARTE II
CAPÍTULO I

Entro em matéria classificando a poesia de Adília Lopes como pós-modernista. A obra de Adília Lopes vem questionar como poucas o binómio qualidade-autonomia que em geral põe a literatura modernista a valer arte. Nele não encontramos um fazer de «unos» a partir de descontinuidades representativas da «confusão» social; nela não encontramos a ambição de refazer a poesia a partir de uma generalização gramatical das condições supostas próprias do seu medium (nela, o próprio verso se subordina à frase); e a «qualidade» que o modernismo buscaria por «tropismo» (cf. Greenberg, 1978: 207) — ou seja por Necessidade — é pela própria perspectivada em termos de «poesia pop». O mesmo é dizer que Adília Lopes abre mão de um recurso fundamental para conformar a literatura àquela série: a oposição feroz ao social, à cultura de massa e ao gosto médio, que impõe uma moral da ascese e da pureza, a qual é uma moral da forma. Ora, o verso adiliano acaba por ser um «dizer informal»; e o que informalmente nos vai dizendo é a absoluta contaminação (i) das «imagens» de poesia com «imagens» apoéticas, provenientes de artes menores e heterónomas e dos objectos de aprendizagem cobertos pelas «sete artes», e (ii) da própria «língua poética» com géneros discursivos muito chãos — o seu português aparece rigorosamente às avessas da «essência histórica da língua literária», por isso que é um «dialecto» a tender à oralidade, e não só tão pouco selectivo como o seu material, como nem sequer ligeiramente conservador (ou, digamos, faisandé). Mostrando-nos, inintencionalmente ou não, que a literatura vive hoje em contextos de absoluta heteronomia, esta obra só é autónoma por se chamar poesia. Para cúmulo, todos estes traços que bastante desacreditam as virtudes éticas da boa forma (a qual, em termos modernistas, seria formação por si só) acompanham uma irrisão não já dos «modernos» projectos de emancipação, mas antes dos seus resultados.Apresentando-se com alguma frequência sob a forma do poema longo, mais notória se torna então a ausência de espacialização da forma. Dentre os «romances» (mas conformados todos à pequena escala), apenas Maria Cristina Martins (que sofreu os efeitos de algo como um cut up — ou um cut off) poderia classificar-se como for-ma espacializada. Todavia, daqui não resulta o «novo» (que podemos reconhecer em Pound ou Franco Alexandre, tão diversos); e, isolados do moralismo estético que lhes foi muito característico, os diktats modernistas tornam-se simplesmente recursos — de resto, intrinsecamente criticados por conteúdos afins do «melodrama» e do Kitsch. Por outro lado (e lembre-se que a espacialização da forma subordinava a narrativa ao lirismo), esta poesia mostra uma das transferências mais radicais que eu conheço da lírica para a narrativa. Ao tornar-se narração, tendem a desaparecer de cena valores modernistas muito afins do lirismo: a singularidade mais ou menos profética, o insight privilegiado que se lhe segue, a autotelia e o hermetismo textuais. (cf. Perloff, 1981) E diga-se ainda que de causos e estórias não promanam saberes nem aproveita a vida de que alguém fosse dono; e que sai muito desautorizada a figura do autor. Esta poesia, e sempre muito matter of fact, joga então com o nosso sentido da contingência histórica e desnaturaliza a representação, desde logo por (i) descronologização e instilação de anacronismos interiores às representações (vd. O Poeta de Pondichéry, um dos melhores livros da literatura portuguesa dos últimos vinte anos), e, o que é mais, (ii) por forçar à «compossibilidade» mundos produzidos por sistemas de crenças e de valores assaz divergentes (vd. A Continuação do Fim do Mundo e A Bela Acordada). (cf. Jameson, 1984, Hutcheon, 1989, Calinescu, 19967, McHale, 1987) Nestes dois pontos o leitor de Adília encontra-se com o Kitsch, a um tempo sociológico, moral e estético. Gosto médio de classes médias e depois gosto geral de massas, respostas desviadas para o estético como um refúgio na facilidade e fazer de conta, falsificação da arte mas experiência estética primeira, auto-ilusão, má fé e aldrabice, (Calinescu, id.) eis o Kitsch, que todavia não é tão externo como parece, e logo porque o Modernismo não é tão interno como se apresenta. Obrando velho com fazer novo, e conseguindo a existência como não sendo socialmente pressuposto, mais não faz do que transportar para o plano dos seus «objectos» — grosso modo, do sentido — o que antes (de)negara, pois é política e moral da forma. O social repudiado, que embora o pareça nunca é abstracto (tem sido modernidades várias), torna-se assim solidário da lógica da inovação e da pureza do meio de expressão, agora como Kitsch pressuposto.Também a pressuposição do Kitsch não é, pois, totalmente externa; e não se limita a aproveitar a lógica da novo que re-produz obsoletos para apresentar como mau gosto o gosto de ontem. Com o Modernismo e depois, o «homem» (ou a «pessoa») aparece na obra de arte para onde não fora convidado, e eo ipso crê-se que por lá assome como homem-Kitsch. Que esta lógica é ainda masculinista é o que Adília Lopes fez questão de nos mostrar, tomando-a à letra muitas vezes, e outras tantas até ao absurdo. Falsificação e fazer de conta retrocedem para forma — mas forma quase incorpórea que acrescenta à nudez a mesma nudez, um pouco como em Maria Cristina Martins a «venda cor de carne» para clientes «muito míopes». (Lopes, 2000: 199) Analogamente, ter-se uma «vida artística», consiste em trocar de nome — de Maria Cristina para Zilda! —, o que, segundo o Gerente, seria «vouloir blanchir un nègre». (id.: 195)

CAPÍTULO II

Eu fazia a correr e às escondidasas coisas mais inocentes(Adília Lopes)
Entre Um Jogo Bastante Perigoso (1985, ed. de autor) e Clube da Poetisa Morta (1997, Black Sun Editores), Adília Lopes foi construindo uma obra a vários respeitos singular. Caracterizável pela extrema legibilidade, porque escrita no português básico e na sintaxe essencial mais reconhecíveis na literatura que se ensina ou utiliza nos níveis mais baixos da escolaridade obrigatória, nela parece entretanto terem-se organicamente associado dois tipos de incorrecção: a política e a «estética». Com uma excepção justificada. não tem livros publicados nas Grandes Editoras.Esta ausência corresponde porventura a um juízo de menoridade. Todavia, com este contrasta o facto de ter passado pela Frenesi, pela & etc. e pela Black Sun, instituições bem próximas da economia às avessas que seria a do campo autónomo literário, e não por lotaria casas mais de poesia do que de outros tipos de texto. Tendo duas vezes recorrido à edição de autor, viu um livro seu editado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em associação com a Gota de Água, num tempo e num contexto de subvenção institucional a actividades poéticas e ensaísticas «de risco», ou porque de novos autores, ou porque de autores «esotéricos». Como se a sua fosse poesia «experimental».As feições esotéricas desta poesia não vão além, contudo, da citação, do Kitsch e da narrativa. No campo autónomo literário estranham-se como exotéricas. De facto, e ressalvo o paradoxo, estas feições que a identificam, cerradamente inter-relacionadas, são também as da sua alienação como arte. Assim, os poemas correm à responsabilidade de personae (Adília Lopes é já de si um pseudónimo), o Kitsch é nela uma armadilha que conduz a impasses assertivos e uma forma de codificação dupla, a narrativa é recusa da dignidade lírica do autor que se exprimisse profundamente como um eu. Tudo isto afirma a insituabilidade social do autor, mas na exacta medida em que recusaria a figura social do eu que se exprime — e logo nestes tempos de lisonja onde ao sr. Silva é reconhecida, para efeitos de concursos televisivos, uma criatividade. [Uma comparação. Com Virginia Woolf, a arte literária que se chamou modernista consistiria na transformação em «profundidades» do Sr. ou da Sra. Smith que os tempos obrigam a ver por fora, no comboio. E assim se dota o romance de recursos de poesia. Com Adília, sobre as «profundidades» reafirmam-se os Smith, assim se dotando a poesia de recursos de romance.] Uma vez que também o verso é raso e submetido à legibilidade mais mecânica, e o português é mais do que «demótico», e a incorrecção retórica faz pendant com o politicamente incorrecto mais escandaloso, dizer daquele modo a condição social de alienação moderna e contemporânea de toda a arte não parece inteiramente consequente. Algum do referido a Adília poderá substanciar juízos opostos, por isso que assaz fraternalmente acompanhará todos os sentimentos «populistas» de incredulidade, desconfiança e descaso (quando não uma não sentida indiferença) que o social (e o social educado para ler, escrever e administrar o cultural, o político e o económico) pelo menos manifesta em relação à arte literária em geral e à poesia em particular. Esta poesia joga o seu «jogo perigoso» de outro modo; e essa sua maneira de ser terá de conceber-se como relação estabelecida e entretida com duas áreas de regulação social da literacia: os círculos literários e as novas classes com cabedal de letras — com poder de falar e de escrever.A incorrecção estética e política destes textos não os recomenda em princípio nos «lugares» onde se ordena a leitura e a escrita de poesia: faculdades de letras, grandes editoras, grandes críticos e grandes poetas. São alvo, quando muito, de estratégias paradoxais de distinção. Gostar-se-ia de Adília Lopes para não se participar do (bom) gosto comum. E nesta perspectiva se poderá ajuizar da própria Adília. Daí, em parte, o seu paradoxal confinamento ao circuito «experimental» que não é alheio a este tipo de contestações.Estas narrativas em verso, romances e causos entre nós participam, e da maneira mais radical , na «romancização» dos velhos géneros a que a poesia muito se orgulha de pertencer. Contudo, não se trata de «poesia narrativa», como aquela que é promovida por um Vasco Graça Moura, ou praticada por autores como Magalhães ou Fernandes Jorge. Nestes permanece todo o decoro poético, de forma alguma abalado pela invectiva, pela colagem ou pela ironia. Antes se trata de estar, como o «romance», na fronteira entre a linguagem literária «completa» e a «heteroglossia». (cf. Bachtin, 1981)Ora, no campo da poesia, esta situação não pode não dar conta de um impulso de descanonização com que os «velhos géneros» — e a sociedade letrada que vai da universidade aos poetas grandes — não parecem facilmente acomodar-se. O correcto português que Adília vai buscar ao não literário («forma» e «conteúdos») é essencialmente lisboeta e não anda neste momento muito longe de falares situados entre os géneros linguísticos quotidianos, semi-literários e socio-ideológicos dos círculos mais jovens literariamente educados (sobretudo marcados pela superficialidade e pela «mistificação») e os mais convictos géneros discursivos que colocam as relações humanas no centro do métier, e que são sobretudo o apanágio da juventude superiormente escolarizada ao arrepio das Letras (Economia e Gestão, Relações Internacionais, Comunicação Social e Cultural, Psicologia, Sociologia…), que não achará de todo imprópria a «mistificação literária». É o português tal qual «literariamente» o fala, e tal qual o descrê por superioridade que investe na condescendência, a juventude (des)emancipada das novas classes de serviços. Por aí mesmo, e porque estes textos têm curso como poesia, não são textos «orgânicos» dessas classes, as quais, como se sabe, sobre não lerem «velhos géneros», só os respeitam «certificados» e depois de constituírem poder e família. E poder e família não saem muito bem representados na poesia de Adília Lopes.Em suma, no círculo literário a «legibilidade» de Adília com o seu «português básico» é um factor de «ilegibilidade»; e do lado do «público» Adília simplesmente não se lê, muito como acontece a uma poesia, que, mesmo descanonizando os «velhos géneros», não é ensinada, lida e escrita, por isso que desde logo é poesia ou poesia se chama: medida velha. Esses problemas de legibilidade são problemas de legalidade. Em tempos de variação dialectal acentuada na «língua poética», o «português básico» equivale ao português do Padre António Vieira, quando se considere aquela língua sincrónica e diacronicamente. Pela força das coisas, esta literatura vê-se então posta no lugar inerte do seu oposto: daquele «purismo» de que não há necessidade quando o «demótico» se acha construído para durar e para sobreviver aos «artistas da língua», eles mesmos sem sequer um «dialecto» seu (parafraseio Ashberry e o seu «Purists Will Object»).

CAPÍTULO III

Kitsch is easy to pronounce, as easy as «itch».(Matei Calinescu)
Quando em Um Jogo Bastante Perigoso Adília escreve (1985: 18)
A minha maladresseera uma forma de délicatessepor uma e outraperdi a minha vidamaladresse e délicatessesão nomes de bordadosque uma rapariga fazna juventudecom aplicação,
cita dos «Últimos Versos» de Rimbaud, o Rapaz Raro — oisive jeunesse / à tout asservie / par délicatesse / j’ ai perdu ma vie —, e apõe-lhes um comentário, ou um à parte, que é uma elucidação metalinguística do código poético num outro código. Rimbaud reaparece inespecificado na origem e submetido agora a uma especificação de gender que o avalia; e assim nos surge o Kitsch feminino a favorecer o nivelamento da poesia «inconformista» pelos bordados que faz com aplicação a menina bem comportada.O texto segue esse movimento típico do Kitsch da redução da arte ao «formato caseiro» — mas, ao mesmo tempo, faz supor um processo de autentificação artística do Kitsch feminino. De outro modo: o Kitsch introduzido no à parte é transferido para, ou contamina, o objecto canónico. O falso estético transforma-se num processo de falsificação estética do «velho género» mais autenticamente nobre. Sobre o citado, pesa agora a «pessoa» de Rimbaud. Esta poesia descobre-nos que Rimbaud era uma pessoa — uma questão de gosto. A questão de gosto é também uma questão de educação segundo os géneros. O Rimbaud ocupado com os seus «erros», que se vê gaulês entre gauleses — os mais ineptos colhedores de ervas do seu tempo —, e busca uma irónica redenção no «trabalho», descobre- -se sem «fibra» no fim de um processo que o fez poeta e incapaz. «Adília» conta-nos de um desastre contrário: perdeu a vida e fez-se uma subjectividade inabilitada para o trágico e para a elegia — à qual, parece, convém que poeta se chame —, através do trabalho sem finalidades grandes, senão a de adquirir-lhe uma robusteza moral. Esta, por feminina, terá de ser maladresse e délicatesse, como dependência a pedir protecção. «Adília» seria a «pessoa» que manhosamente cede voz e vez à definição heterónoma e, parece, escrita para ser lei. A definição antecipa nos nomes dos tipos de trabalho os resultados do trabalho, deixando transparecer a segurança com que se conduziram mulheres a um destino «natural». O Rapaz Raro enganou-se (e fez de conta!); a rapariga comum foi enganada. Os cismas do género ajudam a fazer «pessoas». Rimbaud não é o Universal, nem o seu desastre mais autêntico. Apenas uma heterodoxia passada, que, enquanto tal, existiu no campo (masculino) de uma autoridade passada sobre os géneros, e logo as definições. Rimbaud, enfim, é teórico, ocupado com um sentido geral das práticas; a persona de Adília é prática e dona de saberes práticos, cegos às finalidades para que foram instituídos.Estamos perante um movimento pendular, para a compreensão do qual devemos ter presente que é «tremendamente “camp” descobrir que o “Kitsch” (pressuposto) era mas era arte “verdadeira”, tal como, na inversa, ter a iluminação de que a arte “verdadeira” era mas era “Kitsch”». (Eco, 1989: 84) Não andamos longe, de facto, do camp que cultiva o mau gosto de ontem. (cf. Calinescu, 19967) Estratégia de diferenciação e de refinamento, com a vantagem da expertise irónica, em Adília o passado pressupõe o (mau) gosto; e este acharia sempre inscritos uns seus análogos, entre exemplares e exemplificativos, no espaço dos gostos que não justificam proporções sociais suficientes — i. e., no eterno feminino (ou inferno feminino) que é, todavia, particularmente assemelhável ao lar burguês. Todavia, como o processo aproveita a «universalidade» da arte onde passa a exercer-se, o camp torna-se singularmente crítico, pois desemboca numa declaração da mesma arte sobre si a partir do Kitsch pressuposto.Invertendo rigorosamente posições, segundo as quais a arte inovadora se purifica até ao seu medium, para de si expurgar quaisquer vestígios do Kitsch social e dos investimentos sociais nela que eo ipso a fazem Kitsch, (cf. Greenberg, 1961) esta poesia recorre ao Kitsch social para como Kitsch falsificar a arte literária do passado — a arte avançada, diga-se. E para lhe passar um atestado de «obsolescência». Renuncia à renúncia ao «mundo comum» da «experiência «extravertida», e não se guia já por uma constrição interna com valor de original. (id.: 6)Creio que no mesmo passo mostra que a suspeita da arte sobre o mundo da experiência «extravertida» é uma extensão da «lógica» da suspeita social, determinada em democracia pelos cismas sociais sublinhados por fracturas de gosto, razoavelmente «paranóica» e como tal razoável, que não por acaso escolhe o Kitsch pressuposto para âmbito exemplar dos seus exercícios.Nabokov é claro: na arte o Kitsch é o social que está em toda a parte por virtude democrática. Não há autor americano que não viva em motéis por procuração social não requerida. «Tudo» é (pode ser) Kitsch. (cf. Calinescu, id.: 262) E a literatura é um caso perdido, pois a «gramática» dos seus primeiros e princípios está na língua que é social de todos.A pressuposição de Kitsch dá conta não apenas do fracasso (lógico) da objectivação do belo num juízo, mas também do falhanço (social) da objectivação do belo num medium ou numa constrição interna com valor de original, e porventura sem beleza. Melhor dizendo, revela que estes escolhidos o foram para funcionar como objectivações do belo substitutas (o sublime que fossem não altera os dados da questão).Princípio de obsolescência que acompanha o da inovação, o Kitsch equipara-se, desse modo, a ukazes como os do make it new, mas precisamente porque é um make it old. Por outro lado, apresente embora seus respeitos a Homero, o novo que se faz faz velho o que foi feito. Não redime A Poesia; faz com que muitas poesias existam.Como o «novo», o Kitsch torna-se uma crítica intrínseca da arte, que a faz avançar — pelo menos, rumo a uma desieraquização que ameaça ser «completa»; e na obra de Adília permite sublinhar quer a irrelevância de Rimbaud ou de Sá-Carneiro, quer, pela presença de «sentimentos» e «gostos» que infundamentadamente fundamentaram (passados) acordos categóricos com o ser, culpabilizar Soeiro Pereira Gomes, Nuno Bragança, José Saramago ou o Júlio Pomar que em tempos pôs os Trolhas a almoçar com a Pintura (não por acaso, intelectuais cívicos todos, e com causas). Mas assinale-se que este Kitsch aparecerá a correr e às escondidas — como uma coisa tão inocente que se assume culpada.Recorra-se ainda a Um Jogo Bastante Perigoso:
Algumas proposições a propósito de Sá-Carneiro
1O que é maisirreversível:polir as unhasou cortar as unhas?
2Ele terá passado a vidaa polir as unhas?
3Se passou a vida a polir as unhascomo é que as cortava?4É possível cortar as unhase poli-las ao mesmo tempo?
5Se simo processo polir e cortar as unhasé mais irreversíveldo que cortar as unhas ou não?6Os processos dividem-seem reversíveis e impossíveis por um ladoe irreversíveis e possíveis pelo outro7Polir as unhas é irreversível e possívelcortar as unhas é irreversível e possívelpolir e cortar as unhas ao mesmo tempoé irreversível mesmo queseja impossível?(id.: 17)
Entre aquele autor e esta autora o diálogo chamado literatura é de surdos. Trata-se de uma «conversa» lateral, literal e impertinente («escolástica»). A forma criticamente propositiva de alguma exemplar «poesia avançada» (com a qual esta formalmente corteja a heresia da paráfrase) é gasta em pura perda. O esteticismo do autor de referência, insultuoso do social — «gesto épico» muito acarinhado na memória da literatura adiantada —, enquanto tal deixa de vir a propósito. Os passos do raciocínio põem entretanto a nu um «erro» naquilo que fora uma realização superlativa de uma heresia social (que como a de Rimbaud funciona por uma certa apropriação do feminino). Não é tanto que a «metáfora» do constante polir das unhas esteja «errada» como crítica do princípio lepidóptero da utilidade. O «erro» vem antes do solo epistemicamente muito firme donde se gera uma «cegueira». O ponto está em que a afirmação suicida de que se passou a vida a polir as unhas é teórica — e tão masculina como a sociedade onde apeteceria suicidar-nos. A metáfora do polir as unhas é uma consequência do desdém pelas práticas. Sá-Carneiro reivindica a indignidade de polir as unhas mas esquece, por indignos, os cuidados a ter com as unhas, e logo o cortar das ditas, que é trabalho. A indignidade «irreversível» é contínua com o ethos burguês e masculino que conhece as práticas indignas para fins de reconhecimento, i. e., de nobreza pressuposta. Polir as unhas é um conceito que presume ter assegurado a existência do objecto, esquecendo a desigual divisão social do trabalho que efectivamente produziu esse tipo de relação conceitual. Repete a exacta proporção social que situa o requinte e o necessário: adquire-se o primeiro quando o segundo não é digno de menção. Com um comentário bem mais tardio de Adília, dir-se-á que Sá-Carneiro é homem e que «Os homens são uns senhoritos» (id., 2000: 431) (O tom dispiciendo deve achar-se motivado pela educação contra o Kitsch, que leva seriamente em atenção os diminutivos, e pelo que neles parece apto à expressão das boas intenções de beleza e sentimento). A partir daqui, querer discernir o irreversível no impossível é (i) hiperbolizar o ethos teórico até à perda daquele sentido das possibilidades que configura todas as posições «realistas» e (ii) mostrar-se íntima do raciocínio, da teoria e do «realismo», como não poderia quem é delicada, é desajeitada e trabalha com aplicação. Rimbaud e Sá-Carneiro são, por assim dizer, apanhados a trabalhar «desonestamente»; logo, «trabalhavam em beleza» e respeitavam um dos imperativos do Kitsch. (Calinescu, id.: 259) Que a «beleza» seja «desonesta» é o que dirão e praticarão variadíssimos artistas, e entre eles notoriamente os grandes moralistas de confissão sexual heterodoxa (cf. Bacon), que facilmente chegam aos limites e ao «deserto». Picante é que o insulto à beleza (Rimbaud) possa ajuizar-se belo, e logo falso, ou falso, e logo belo.Entretanto, colocou-se em suspensão o imenso valor estético daquele polir as unhas insignificantes; falou-se de outra coisa e por uma enorme diferença de tom. Polir as unhas seria outra coisa; algo empiricamente condicionado, e pela raiz, que não foi produzido por uma voz transcendente como parte proporcionada de um discurso ergonómico autobastante — e, aliás, reivindicando ao social e contra o social aquela suficiência transcendente. A partir destas «proposições», o poema de Sá-Carneiro não pode autoconsultar-se nas unhas. É objecto de investimentos sociais (e Kitsch). Não é impossível que a leitura em primeiro grau (ou «degrau», ressalvaria a autora) funcione como Kitsch de facto — como catarse fácil. (cf. Adorno, 1982) Na verdade, a minha ideia é a de que, se é impossível saltar de vez esse degrau, nada nesta poesia assume aquela feição caracteristicamente modernista da infinita prorrogação da catarse — que no limite a inibe, e que, aliás, seria um processo heroicamente suportado tanto pelo autor como pelo leitor. É, então, este o momento de explicitar um dos pressupostos destas observações: o Kitsch não é, senão que foi sendo definido. O que dele sabemos decorreu maioritariamente de contradefinições que o Modernismo utilizou no decurso de um processo de autodescrição. O Kitsch é uma delas, e vaga; mas talvez também a mais «oposta», remontável a momentos tão iniciais como o repúdio do ornamento como um crime (e o que na arte está a mais é «social».)Esta utilização do Kitsch (pois se trata de o utilizar), a qual acabei de caracterizar como falsificação estética do canónico, poderia então aproximar-se da farsa quando se entenda esta como produção de lixo estético e respostas inócuas. Mais acentuadamente, na poesia de Adília Lopes todos os paradigmas estéticos assentes (ou antes: consolidados, e, funcionalizado o sistema literário, todos o são) se tornam virtualmente inócuos. A catarse funciona como reciclagem de «gostos» em lixo estético; mas, por outro lado, e dependendo do tipo de leitor, é de algum modo também ela posta em causa já pela dupla codificação e pelo segundo grau, já por um sentido muito apurado do anti-clímax, o qual se traduz, por exemplo, na conclusão do poema por uma ressalva ou pelo seu confinamento ao estado de epígrafe — ou ainda por outras formas de inibição da exaustão feliz do sentido que o impedem de ser uma grande coisa fácil, como no fim de Maria Cristina Martins acontece. Tropo emperrado entre dois (im)próprios, a «transferência» da história entre nomes institui aí, ex abrupto, o domínio da «vulgaridade»:
Epílogo
Guilherme chamava-se Hipólito.(Lopes, 2000: 199)
Um outro aspecto a considerar, muito presente em Maria Cristina Martins (1992) mas não menos exemplarmente em A Continuação do Fim do Mundo (1995) ou A Bela Acordada (1997), e ainda numa infinidade de poemas soltos, é a protagonização do discurso pela rapariga de antes do primeiro LP dos Beatles, que abunda em prendas domésticas, educada por avós e por tias — e colocada, com alguns resultados cómicos e trágico-cómicos razoavelmente diversos, em contextos modernos de emancipação sentimental. (cf. Diogo, 1997) Algumas dessas personagens são reconhecivelmente portuguesas, de pequena-burguesia salazarista; e, pelo furor mimético que a todas acompanha num desejo de desgraças (e catarse imediata!), terão deixado moderna descendência. Assim,
e eu que queria ouvir bem a sirenee ver o incêndio o assalto a estropiada o estuprorilharei bolachas mariaaté ao fim deste diae do outro?(id., 1985: 48)
E também assim a rapariga «que usa considerações primárias» e tem inveja da, e imita a, que «leu a colecção Que Sege? em diagonal e / nunca se constipou», «usa bermudas de tigre / e fala-te sempre do segundo degrau». (id.: 30-1)É de assinalar que a resposta à pergunta «o que posso fazer mais?» nos traz a versão surannée da «pessoa». Como se «pessoa» fosse a marca cultural do obsoleto, entre o Kitsch e o melodrama, aqui significativamente aposta ao lugar-comum da vocação solitária do autor:
tratar do piolho verde das minhas roseiraschamar-me Maria Bárbaraescrever uma novela góticaviver de pão e laranjas(…)(id.: 24-5, sublinho)
A versão feminina não esconde a congenialidade profunda entre o Kitsch e o would be artist. Ora, como desde os inícios da Modernidade todo o artista é um would be artist, por isso que não existe uma arbitragem reconhecida do gosto, nem uma academia, nem uma hierarquia — tais que um David seja um artista e um Duchamp não o possa ser —, todo o artista que avança leva o Kitsch no seu rasto. Foi possível — e não se vê como não o será ainda (possível, insisto) — passar de contrabando o would be artist para a arte, e com Kitsch e tudo. Exemplo: o douanier Rousseau de quem troçavam os Picassos que com ele conviviam.Diga-se que, não por acaso, Maria Cristina Martins tem nome de pessoa completa, como ser mais de história do que de poesia e mais de particular do que de típico; e que o seu «romance» se coloca assim sob a égide da banalidade — ou do Kitsch inevitável da «pessoa». Não é que a «pessoa» não servisse para tema de interesse geral. Não é disso que se trata, mas antes de uma debilidade sobre a qual não pode estabelecer-se uma proporção estética livre — quer a que assim pudesse julgar o social, quer a que fosse pura «aparência estética» imune aos abusos da «incultura», quer a que, sabedora já do carácter Kitsch das anteriores, adergasse chegar diante de nós como um leão no deserto — ou antes, como uma barata no linóleo. O poema é apanhado, por exemplo, pela inércia da «pessoa» e do seu «eu» nalgum lugar-comum, nalgum gosto que seja uma falta de gosto, nalguma mania. Nenhuma grandeza o defende — nenhum Laocoonte (que não tivesse de ser um «mais novo» Laocoonte). (cf. Greenberg, 1986) Não é a rapariga perfeita que nunca se constipou.Voltemos agora àquele epílogo: Guilherme chamava-se Hipólito. Servindo nesta obra de exemplo da insistente «vulgaridade» dos nomes próprios (o nome próprio nela é o nome próprio do «vulgar»), este estranho anti-clímax, que põe em causa a «história» de Maria Cristina (e/ou do se duplo Maria Cristina), é também solidário com a falsificação estética. Afastado o designador da «pessoa», estabelece-se, a meu ver, uma alegorização do radical nominalismo que aflige (ou de todo não aflige) esta moderna arte literária. O Kitsch como predestinação social, que se exerceria pela «pessoa», torna--se uma capacidade de extrair substância aos «objectos» e consente na flutuação «arbitrária» de nomes. O Kitsch é uma pré-suposição, que depois entra em roda livre, capaz de revelar «pessoas» e «gostos» em heróis, valores e purezas. Todos, e quando pretendam o contrário, seriam socialmente pressupostos; e o processo corre ao lado de um nominalismo facilitado, tal que a arte, como esta, pode sê-lo por «declaração». A agilidade atroz desta poesia coincide assim porventura com a passividade mais extrema. Aparece um descaso céptico ao serviço de uma irritação do «todo» social em verso. É esse o easy itching da obra de Adília Lopes.Quando os sistemas sociais (e entre eles o literário) são não-hierárquicos e funcionais, e portanto caracterizados pela disponibilização de todos os «conteúdos» — agora comparáveis no mesmo plano de igualdade, como coisas de história e passado, e materiais de trabalho (Roberts, 1991) —, descobre-se que o projecto da modernidade iluminista não coincide de todo com essa iluminação dos sistemas. O autor não se acha emancipado de «tudo» para existir de si, por si e para si, tal um ente novo e autofundado como um quadro de Pollock declararia sê-lo. O autor pode escrever tudo (o que até não é a mesma coisa), apenas porque tudo se acha escrito, i. e., o que escreve pode ser funcionalmente comparado com qualquer outro escrito — foi funcionalmente comparado com outros escritos e continua a ser com eles compaginado. Sá-Carneiro não é sem Adília Lopes. O autor, que é um nome de ‘o sujeito’, passa a ser a «pessoa» que faz lastro aos possíveis, aliás «realizados», porque, quando a hierarquia não é já insubstituível, são apenas limitados por considerações de «rendimento». E Adília parece dizer-nos que passa a ser o melodrama em estado nu. É a «pessoa», por não poder nascer ex nihilo e de puro acordo com o estado de tabula rasa em que foi posta a tradição. A criatura por extenso nomeada como Maria Cristina Martins é a impossibilitação literária do topos modernista-futurista da autogénese. O autor é a obra, mas em modo de sentido e não análogo: o sujeito não tem à mão um objecto que lhe corresponde por «pontos» de de (re)criação infinitamente susceptíveis, tal que Pollock seria o quadro, ou o quadro seria Pollock. Adília Lopes seria Ana Cristina Martins, e logo uma «pessoa».Nas «fábulas» de Adília o palácio das necessidades da arte volta à contingência que, em rigor, nunca deixara. Em alguma loja de fazendas está o autor conduzido para «pessoa». A verdade da escrita ágil residiria então nessa passividade essencial, por isso que à emancipação total dos sistemas como sistemas de comunicação por códigos gerais-simbólicos — e também transformação das tradições em «conteúdos» contemporâneos e colocais — corresponde a não emancipação dos assujeitados à «pessoa», ao «gosto» e ao «melodrama». «Melodrama», «gosto» e «pessoa» dão conta frequentemente de domínios da experiência que foram proscritos pelo sistema de comunicação literária — não porque sejam «pecado», e, se pecado, então de lesa-arte, mas por um pressuposto de funcionalidade que se atém quanto possível à comunicação geral-simbólica. A experiência propõe temas de comunicação a um sistema que «preferia» não contar com ela. No palácio e na loja de fazendas vive-se, de resto, a mesma condição, qual seja a de que a experiência só faz sentido como sentido — não existe sem transposição para comunicação, que, no caso, atende a condições ou códigos de arte. Contudo, no palácio, e porque aí seria Arte, o sentido pode examinar-se (e depurar-se) até ao pré-sentido e ao pressentimento de sentido, recusando-se a pretensão do social — atribuída ao social — em equacionar a experiência com um sentido «extravertido», o qual seria bom para loja de fazendas (ou para romances, também). Em perspectiva próxima, quando em Clube da Poetisa Morta (1998) Adília nos diz que «Era uma vez / uma rainha / chamada Vitória / morreu a rainha / não acabou a História», talvez devêssemos estar atentos ao facto da datação. A história que continua seria (pós-)vitoriana — seria, vale dizer, esse processo de ante-datação contínua que se chama «pessoa». Em contraparte, a vigilância sobre o sentido qua sentido, e contra alguma forma social de cru (e de história), acaba «vitoriana» face à história que continua. Finalmente, num mais restrito âmbito de análise, e considerando-se a transferência da responsabilidade da enunciação para pseudónimos, e das acções para personagens, que, sendo embora passagens «preliminares» pelo sentido, já são todas mais «pessoas» do que «artistas», sugere-se que é (im)possível fugir ao Kitsch, quando este se entenda como uma afectação da obra à «pessoa» mas diante da afectação de um objecto a um sujeito — a tal que, essa sim, seria Kitsch.Desaparecida a impositividade dos códigos «clássicos», nem a impessoalidade modernista pode fugir à «pessoa» (que irrompe logo pelo «estilo único», à mercê de todo o contágio social quanto mais único — porque imitável, ou seja, objecto de imitação, ou seja, objecto de falsificação, ou seja, sobrecodificação estilística que o traz de origem falsificado).Se a «pessoa» é a verdade, é «falso» o autor que tem mão no objecto. Fugir ao Kitsch, mas no «último degrau», consistiria assim em dispor frente a frente «pessoa» e «autor-sujeito», rigorosamente encadeados à ubiquidade do Kitsch pressuposto. O autor-sujeito é uma das crenças «pessoais» situadas na história que continua desde a morte da rainha Vitória, senhora de muitas crenças e gostos, como se sabe, e datados todos, como convém. Em consequência, dir-se-ia, surge-nos o autor envergonhável, objecto social de «chantagem».Porque todos podem sê-lo, todos os poemas são postais ilustrados, e, quando públicos, com efeitos como os que se antevêem em O Poeta de Pondichéry:
e o chantagista publicava um postal ilustradoque eu escrevi a Diderot de Pondichéry(poema X)
O Poeta de Pondichéry é, de resto, uma narrativa toda ela muito demonstrativa da subordinação — para artistas «inesperada» — da instância poética (o Poeta would be artist) à instância social-crítica (Diderot), no caso «infeliz». À destreza do Autor extremamente solto corresponde a passividade extraordinária do Poeta inibido (quase sempre narrador autodiegético) que, conquanto não deixe de o fazer, e até o faça «muito», «evit[a] escrever / e viv[e] como escrev[e]». (id.: poema III) Mal e pouco nos dois casos.Em suma, nesta poesia não se exprimiria o eu de um autor, por isso que a expressão é cedida à persona de Adília Lopes e às personagens dos seus casos e romances. Mas se o Autor desse modo escapa ao Kitsch (pressuposição inevitável, não importando se fundamentada ou não), é apenas para que a poesia mais efectivamente nos revele o seu império, no verso e fora dele.A introdução do Kitsch pressuposto no sistema de comunicação literária é arbitrária apenas como o sistema literário o é. São ambos sociais — socialmente arbitrários —, não obstante o primeiro ser «falso» e a arte produzida pelo segundo não o ser. Não é, portanto, à partida imotivada. Na verdade, Adília põe em exercício, e de modo muito factual — se às escondidas, à pressa —, uma «lógica» inscrita na moderna comunicação literária. À primeira vista, o Kitsch parece uma chantagem que o social faz à arte. Todavia, toda a arte que se diferencia continuamente da arte não faz mais do que submetê-la a chantagem (com o) social. Na verdade, a autonomia da arte é um passo em falso — um passo no falso —, por isso que há-de sempre combater em si toda a presença do mundo «extravertido», e até à suspeita pura e simples. A mesma exposição da arte ao público, e por uns dias, permite que a engula o mundo «extravertido». A arte repudia a arte colonizada pelo social e parte naufragar numa nova robinsonada, até que chegue Sexta-Feira. Hoje, que Robinson se pode vestir de Sexta-Feira, casar com Cicciolina e ter muitos bacorinhos, o mecanismo continua válido. Koons é uma chantagem substanciada na chantagem social que a arte faz à arte; o resgate é o seu reconhecimento como artista. E é um artista. Pois que outra coisa poderia ser? É esse movimento que põe de pé o Kitsch pressuposto.A chantagem que torna o Kitsch «ubíquo» não existiria, obviamente, se o mesmo Kitsch não fosse, e de há muito, a nossa língua estética materna; mas o ponto está sobretudo em que, não dispondo a sociedade de sistemas hierárquicos de «regras» que permitam definir um poeta enquanto tal (para ser poeta, Camões não precisou de redefinir a poesia, nem António Ferreira ou Andrade de Caminha), a regulação externa deve ser substituída pela regulação interna, não defendida contra a datação, que é feita por would be artists com gostos, crenças, idiossincrasias, manias, etc. — pela «pessoa» e «irreversivelmente». Não se é o Poeta, e pode ser-se o Poeta de Pondichéry. Como quem, conhecedor do jogo, discriminando incompatível a relação entre o ser e o lugar, e opondo descrença à crença e desgosto ao gosto, dissesse O Poeta da Senhora-a-Branca. A Senhora-a-Branca é uma praça de Braga que faz O Poeta improvável. Sob condição de que O Poeta não seja, posto possa haver poeta (preferentemente «escritor de gosto»), pô-lo na praça tanto é como exercer chantagem: chantagem social da arte sobre a arte, chantagem do social à arte.

CAPÍTULO IV

Como um colegial doente.(Robert Louis Stevenson)
Falemos, então, de «pessoas». De «pessoas» que, ao exprimirem-se no texto literário (O Poeta de Pondichéry) ou na arte de viver (A Continuação do Fim do Mundo, mas também Maria Cristina Martins), como expressão falsificam um e outro, na exacta medida em que o produto se localiza num «gosto» e ao juízo do «gosto» se submete (ou antes, ao seu arbítrio). Diga-se, agora, que nos textos de Adília não há decisão para os enredos do «gosto» — não é considerado um «gosto» superior que tenha razão contra os protagonistas do Poeta de Pondichéry, da Continuação do Fim do Mundo ou de Maria Cristina Martins. O retardo socio-ético dos personagens classifica o vanguardismo ético das situações pedidas de empréstimo à literatura emancipada quer dos Nunos Braganças, quer da Virago Books — com o acréscimo de um adolescentismo algo perverso: é a jeune fille rangée potuguesa de outros tempos, provincianamente formada por tias ou por leituras edificantes, quem, sem deixar de o ser, protagoniza as letras da emancipação como que às escondidas e de forma muito inocente — ou que, em alternativa, evolui no mundo «real» em estado de crença primária e sem fazer discriminações: como um melodrama em carne viva (… e em água de colónia, ainda assim?).Este equívoco «retórico» aparece-nos como um equívoco moral, «cómico» mesmo quando «trágico», que o personagem nunca vive como tal. Além do mais, esta obra coloca perto da «doxa» (i) um ou outro «arquétipo» como o do «casal», com os dois membros em perfeito acordo «metafísico», (cf. Diogo, 1997) que é ou deve ser fonte originativa de histórias e mundos (vd. A Continuação do Fim do Mundo ou A Bela Acordada), e (ii) a auto-evidência da performance do clown, moralmente equivocado, mas que não se dá conta disso. O acordo entre a ordem objectiva e os princípios subjectivos da organização social — a doxa, justamente (cf. Bourdieu, 1977: 164 e passim) — é instituído pelo o clown imperturbável, que o performa com o seu «corpo» constante (ou que simplesmente não apre(e)nde). Embora A Continuação do Fim do Mundo o pareça (porque tem um final feliz), os romances de Adília não são romances de aprendizagem. O acordo entre a ordem objectiva e os princípios subjectivos dessa ordem, dado que a ordem é de outros mundos e/ou de livros, torna os seus quixotes surdos à presente harmonia objectiva das coisas; chegam ao seu destino sem saírem de um «delírio» (o poeta de Pondichéry consegue ser a objectivação subjectiva dessa demência que, conquanto melancólica e chocha, não existe à margem do entusiasmo atribuído ao trovador). Assim, as heroínas de A Continuação do Fim do Mundo, e já de Maria Cristina Martins, atravessam as situações mais impossíveis, perfeitamente insensíveis ao completo antagonismo entre as crenças do seu mundo e as daqueles para que foram transplantadas — ou à divergência mais ou menos acentuada entre a ordem e os princípios. Seres de primeiro grau, o seu estado de inocência doxástica — geralmente sublinhado pelo acordo da pessoa com uma ortodoxia (ultra)passada — confronta hereticamente todo o tipo de naturalização social, reduzindo-o a uma ortodoxia (e, para retomar os motivos deste texto, certamente que a um «gosto»). A síntese passiva, corporal, de um mundo passado é recortada sobre outro mundo que somente o não expropria pela teimosia de louco ou por aquela «justiça poética» que é «liberdade poética».Nesta perspectiva pode dar-se conta do «hiper-realismo» dos causos e das histórias de Adília. Realismo transferido para o pormenor colocado sob uma lente de aumentar, dissocia o texto da noção reguladora — segundo Lukács tão cara ao realismo — do homem como politikos zoon. Isola «pessoas». A inversão de precedências entre o todo significativo e o detalhe dá origem ao cómico que a «pessoa» torna «metafísico». Cito algo que já é um à parte (de resto, o corte neo-dadá transforma o texto todo numa sucessão de à partes):
Nesse romance era um russo emigradoque fazia cavalinhosnas costas da cama de mognoda rapariga parisienseque seduzira enquanto juntostraduziam uma fábula de Krylov (Lopes, 2000: 194)
Regressando ao clown, diria que a formação é transformada em performance, e que a «pessoa» se torna a actualidade pura de uma obsessão. Cite-se de Maria Cristina um exemplo da completa surdez ao mundo:
E a Judite? qual Judite?uma loira vesgaMaria Cristina não se lembravaas pessoas passavam por sicomo sumo de toranjapor um passador roto (id.: 191-92)
E lembre-se como a personagem, Lola Montez peculiaríssima, passa, sem discriminação «moral» que possamos fazer, da loja de fazendas para o cabaret, ou assim. O pragmático enlouquece, a inocência é absurda:
O gerente recusouconcordava com a vendamas só com uma vendade fazenda cor de carnede modo a que os clientesmuito míopes quase todosnão dessem por ela
Quando se começou a notara gravidez da strip-teaseuseMaria Cristina substituiu-ae na minha vida artísticanão me posso chamar Zilda?vous vous moquez du mondeou quoi?ça c’est vouloir blanchirun nègredisse o gerenteUma vez ao visitaruma casa de passeadormeceu(id.: 199, 195, 188)
Do mesmo modo, e simplesmente, o bordel é o lugar do bem-estar infantil. O fragmento a que me refiro começa pela evocação nostálgica do paraíso da infância:
Todas as noiteshavia merengues à sobremesaparece que é costumenas casas de passe(id.:195)
E agora, uma vez que estamos falando de «pessoas», convém referir a aproximação aos universos do paraliterário, perspectivados como melodrama: inveja mimética, ciúme e dedicação, amor louco, pobres e mendigos, abnegação, novela russa (Dostoievski: «Maria Cristina fechou os olhos / e mordeu um dedo») — e a biblioteca cor-de-rosa, e a Cinderela, e Cyrano, e John Chauffeur Russo, e quiçá os sapatos vermelhos e a rapariga dos fósforos.Como um colegial doente, que nobremente sonha tornar o mundo refém da sua fraqueza, a «pessoa» entra em delírio mimético. Morreria de puro altruísmo (pelo outro que é o eu melhor que eu); e o mundo sentir-se-ia enfim culpado e pobre:
O mundo ficava assim mais pobrea pobreza do mundo confrangeu-aera como a seguir à mortedo último mohicano(id.: 184)
Mas vejamos o sacrifício:
A felicidade dos outrosarrelia-ao mal dos outrosnão a consolamas gostava de ver Guilherme e Maria Cristinamuito desfigurados e doentesna maior misériaatrás de um tapumeAh se houvesse um incêndioe eu no meio das cinzasos salvasse(id.: 187)
E vejamos o comentário arguto:
Afinal não queria matar Guilhermequeria salvá-lo de morrer afogadodando por ele a vidanuma troca complicada de reféns(id.: 192, sublinho)
Os sentimentos calorosos (ou antes, que nascem das e para as palmas calorosas) são o Kitsch mais puro que objectiva o belo na segunda lágrima que nasce em cada um do acordo entre todos os que choraram a primeira. (cf. Kundera, 1985: 285) O texto deixa claro, todavia, que tanta nobreza é o fazer de conta com que se engana um sujeito de má fé; na realidade, são o ciúme e a inveja, a fealdade sentida e a pena de si que despontam de rusgas sociais ao amor-próprio. Tais devassas funcionam, e numa íntima troca complicada de reféns, na medida em que as razões sociais sejam também estéticas e se deva crer no calor, no amor e em Mr. Le Prince. Mas Mr. Le Prince pouco cede do reconhecimento que o torna conhecível; a troca de reféns é complicada, por tradução psicológica e, é caso para dizê-lo, enredada. Ódio, inveja e outras coisas rasteiras podem trocar-se pelos merengues da ternura triste e de mais sensibilidade ainda; o único refém, todavia, é o colegial doente que, como todo o petit prince, faz Mr. Le Prince por de si fazer arras de um Príncipe.Posto isto, não parece despropositado referir ao texto de Adília, e como forma que a pensa, a noção, não sei se melodramática, de que o mundo se move a razão de estética. Como já o anunciara Kierkegaard, o mundo admira o que Maria Cristina acha admirável e amável: poder, egoísmo, destreza de espírito, porque o mundo existe para aboutir a um quadro de Rubens.Aparência e beleza. Maria Cristina só seria reconhecível como um cisne quando fosse um pato feio que seguisse atrás de Mr. le Prince e por ele desse a vida. A morte impede, todavia, ouvir aplausos. Normalmente, devaneia-se por leituras ou pela imaginação a fim de se sentir a superioridade íntima, i.e., aquela que nasce do sacrifício que não se cumpre e que vem profusamente inscrita em todos os manuais de moralidade cívica-prática e não apenas no Cuore. O movimento esconde o desejo de que os privilegiados percam a aura, e fiquem «desfigurados», doentes» e na «maior miséria». O mundo faz chantagem estética com as «almas», e a beleza que não aliena o humano aliena humanos. Como as trocas são complicadas, algum vice-versa. Uma olhadela aos extremos que somente a inocência e a inveja metafísica do poeta de Pondichéry (que, aliás, viveu sempre sob o olhar de Diderot) poderiam produzir:
e quando os outros se põem a olhar para mimdeixo de saber como me chamo(poema XII)
Assim, se a linguagem de Adília é extraordinariamente afim do «português» da nova classe de serviços, a especialização em relações humanas e sentimentos que distingue culturalmente essa classe (cf. Bonner e du Gay, 1992) acha-se, todavia, nos antípodas deste «melodrama» tão intimamente conhecido. Porque nesta obra o amor é tanto mais amor quanto seja ferido por aquela falta de prestígio e de jeito que o leva patinhando atrás de um crédito e de um brilho — e a ser (caso pouco frequente, ainda que a Bovary seja um mito) vítima dos sentimentos fáceis. Por muito que configurado que esteja pela «pessoa» cómica, este funambulismo admirável não afaga classes felizes.

Bibliografia
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Este ensaio acompanhou como posfácio a reedição portuguesa conjunta de O Poeta de Pondichéry e Maria Cristina Martins pela editora Angelus Novus, em 1998. Jorge Esteves Cunha reescreveu-o, a pedido de Américo António Lindeza Diogo. Aumentou-o, aprofundou-o, e em muitos pontos trocou-lhe o sentido, se o tinha.Já o corpus da obra de Adília passado a exame permanece no essencial inalterado: não vai além do Clube da Poetisa Morta, livro que então parecia uma recolha de nugae, tendo passado quase sem excepção por publicação avulsa prévia, e que agora percebemos ser o começo de uma outra fase. Recorre-se, apenas, a um ou dois passos da obra posterior, mas para corroboração, sendo que a citação, em alguns casos, pela recolha completa de 2000 obedeceu a razões de conveniência que esqueceram. Algumas observações de filologia e sociologia, arrumadas quase todas no ponto 2, consideraram-nas Cunha e Diogo precisadas de nuance, quando não de emenda. Temendo-se embora muito do que até chegarem aqui se não temeram — ser pior a amêndoa que o cianeto — aqui vão duas: é duvidoso que uma obra não possa receber leituras e gerar respostas pouco apósitas, e de classes de leitores que se suporiam não ser seus (nenhuma possuirá uma forma que a defenda capazmente dessas apropriações); a obra de Adília, e a «pessoa» Adília, podem ser — de facto foram — celebradas pelos media, e mesmo envolvidas pela sua autocelebração «histérica».
Fernando CoimbraJaneiro de 2002

POSFÁCIO JÁ SEM AUTOR

80 e 90: as décadas da nossa modernização, do «cultural turn» do capitalismo, das Obras Completas e das Antologias que o são quase. Vulgarizou-se esta forma anteriormente destinada à consagração dos consagrados. A poesia habituou-se ao volume num mercado habituado ao romance e habituado ao mercado. Poesia, rosa dos mundos, calendário do tempo, ouro do século, castelo dos destinos cruzados, silva de postais e arte postal, florilégio de amores, livraria-bar e base de copos, portada do manual escolar e bem encerada porta da casa do ser…Descobrem-se Obras Completas onde não suspeitaríamos Obras. As Obras Completas são capital cultural. Completam-se Sobras para significarem capital cultural. O capital significa cultura. As Obras Completas confirmam o muito tempo pessoalmente investido na acumulação dos activos simbólicos. A publicação responde que esse tempo é socialmente protegido, que acontece coincidir moralmente com a revenda do vendido e economias de escala. É um pacto de regime.A Obra Completa afigura-se um Museu Imaginário. Não é necessário que as Obras sustentem a sua relevância na capacidade de apropriação de recursos legitimados e objectivados nos Museus Imaginários. Toda-via, susceptível ao credo, e mesmo insuspeita, a poesia optimiza essa forma de tornar simbolicamente efectivos os cabedais de cultura. Entre nós, desde Sena a Fernandes Jorge e Graça Moura, que não são poetas quaisquer. A cada Obra Completa sua musa, com alguma museologia.Os fastos editoriais andam nas imediações da plebeização. Esta é uma contraparte da transformação do capital em informação e cultura. Abundam os recursos, quando menos e menos confinados a algum sagrado e menos geridos por escolas e academias, padres e mandarins. A Obra Completa, todavia, presume de poesia e opõe-se à vulgarização de bens de cultura em todos os domínios, e ao que poderia ser o recorte brechtiano disso. O país produz cada vez mais poetas, e poetas plausíveis, mas os mesmos poetas enobrecem. E se uns visitam a Arte, outros recorrem a uma forma meta-psicológica de desplebeização: a melancolia. O enobrecimento consuma-se com a Obra Completa, o capital embranquece.As Obras Completas têm o seu quê de Fundação Cultural. Em termos adilianos, de Fundação Adão. Tal Obra Completa parece ser o espelho da impudência, tal outra uma pequena empresa de conteúdos.Uma grande porção de epígonos incorporou directamente o que foi a pura poesia. Protesta a existência de um capital poético, independente da cultura e da língua e também das suas realizações poemáticas, que não conteriam palavras. Por vezes é um anzol que fisgará a Transcendência. Atardamento, ou habitus transviado e nostálgico de autonomia, afastam-se da «cultura», da «prosa» ou do «real quotidiano». De facto, em muitos poemas vê-se mesmo o poeta que passeia no descritivo como quem elegíaco se afastasse. Como boas imagens de carisma e «profecia», Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, também Herberto Helder e Nuno Júdice, são o espírito santo de que são dons estes bebés. São inúmeros os casos de «pureza», vagamente reminiscente da casa do ser, e exilada de facto para a periferia mais baldia do campo literário. Ao dobrar do milénio, o mainstream poético é feito de generalidades reconhecíveis, simplificadas, esbatidas (a partir de Eu-génio de Andrade, Ramos Rosa, Helder…). É feito da dicção fácil, da compostura, do fumo lépido do viúvo espúrio dos afectos, onde embandeira o estro baço, que sagra.A autonomia, menos verbal do que um efeito de enunciação redonda, e toda eufemizada, encontra pois o seu dublê metapsicológico (e «culto») na melancolia ou na nostalgia. Estas práticas médias e nédias de «poetas indicativos» (para usar de uma expressão de Fernando Guerreiro), estes compromissos entre tropo e torpor, configuram o universo de sentido de uma poesia que é madona e o menino mas violência simbólica, ou seja, consenso. A impositividade deste pode ajuizar-se pelos produtos que são muitos, e pela linguagem da recensão crítica, que traz suposta a língua deles. Na presença e na ausência, para além de vida e morte, a poesia é onde a arte vai conservando para um sujeito masculino toda a sua dignidade metafísica.A fractura principal do campo parece processar-se entre as «gramáticas da cultura» e as «formas de incultura» que desdenham as ciências da Ilustração. No conjunto, dominariam as primeiras. Mas não se pode dizer que sejam de facto hegemónicas ou sequer que gramáticas da cultura configurem todos os trajectos para a hegemonia e homogeneamente o façam.Em primeiro lugar, informalismos vários, alguns prezando-se de contra-cultura, alcançaram o estatuto de Obras Completas apresentando-se como capital cultural acumulado e incorporado ao longo do muito tempo que se chama «carreira» (Pimenta, Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Jorge de Sousa Braga…) — e o mesmo aconteceu com (re)propostas de transcendência do poético por respeito à cultura (Vergílio Alberto Vieira, Laureano Silveira, talvez António Osório…). São todos compagináveis a este nível com poéticas culturalistas, maiores e menores, como as de João Miguel Fernandes Jorge, Vasco Graça Moura e Luís Filipe Castro Mendes. Ao mesmo tempo, se a plebeização faz de um Al Berto um poeta culto em seus momentos, bem capaz de comissariar uma sua exposição e encaixilhar «morceaux choisis», já em Adília Lopes encontramos uma vocação da muita cultura para a plebeização, nítida no demótico que não se importa de ter regras mas não é aspergido pela fina fragrância corrupta de uma língua histórica literária, na citação sem autoridade e nos auctores que se resumem sem «profecia» e se deixam sem citações (sem o Completo das suas Obras). O mesmo Vasco Graça Moura acusa uma «proletarização» da poesia — a que foge porque a descobre e seria ele o cânone dela —, considerando a (desejável) vocação universal do verso seu contemporâneo para a prosa e para a narrativa, a qual, nestes tempos em que não adianta esperar protecção aristocrática e as visitas do Anjo no castelo de Mateus, poderia ser um «esquema produtivo». Em segundo lugar, Luís Niguel Nava atinge a maioridade não ofuscada pela sombra de Eugénio através do repúdio da cultura e da forma, ao que parece exigida pelo «corpo» que pede ainda o poema em prosa; e António Franco Alexandre e Manuel Gusmão, que empreenderam estudos mais que secundários, constroem obras de facto completas: o segundo por um controlo da «sintaxe» nem sempre à maneira de Carlos de Oliveira, mas tendo presente a sua lição; o segundo pelo lançamento de hipóteses, situações, personagens, recorrências na perspectiva de um sentido que escape àquelas retículas. Em Gusmão, aliás sem Obra Completa, o mundo tem análogos imediatos na página (e por extensão no ambiente de trabalho), por uma espécie de convenção (que tem história); em Alexandre, página e mundo não são exactamente análogos, senão que na primeira há algo como «pequenos». O quotidiano e o completo acompanham com aquela visitação dos lugares da cultura que é um tropo laico (e um tropismo), presente em tantos destes autores e do qual se deduz que a cultura é o de(sen)cantado que fica da dissipação do «sagrado» (que pode ser tanto como fado, lugarejo e festas). O sagrado dissipado contém e encerra quase todo o domínio do real a que na década de 70 alguma poesia pretendeu regressar (cf. Joaquim Manuel Magalhães). O poeta pressuposto sage (deve ser convenção social) frequentemente cuida que a sageza é um zen que vem nos haikai e para prestar serviço à pureza da forma. Talvez se possa afirmar que a cultura, hoje por hoje menos o resíduo de uma vaporização do sagrado que se pode guardar numa lata de spray e mais uma das formas de funcionamento ininterrupto do capital (e que por certo o branqueia), permite colocar em perspectiva os consensos e dissensos do campo poético. Esta cultura torna dificilmente dissociáveis a grande cultura e a plebeização afirmada ou denegada, o espectáculo e a crítica das imagens. Não permite o funcionamento mais inequívoco ou mais problemático do «valor», seja ele literário, poético ou estético — e isto num tempo em que publicam ainda Helder, Sophia, Ramos Rosa, Eugénio, Gastão Cruz e Fiama. Cada qual a seu modo, mas melhor se confrontados, Al Berto ou Adília Lopes, Fernando Guerreiro ou Tolentino Mendonça, Graça Moura ou Nuno Júdice, Tiago Gomes ou Fernandes Jorge, Fernando Pinto do Amaral ou Firmino Mendes colocam, se o quisermos, problemas de valor. O campo poético, apesar de, por comparação, muito restritamente frequentado, parece em perda de autonomia. Nada parece definitivamente ultrapassado; nada parece redundante. Os padrões de qualidade (debilitados) não recusam nem a comunicabilidade nem as doxas sociais e estéticas. Vasco Graça Moura, com prosa, narração e marialvismo, não deveria possuir grandes activos simbólicos; Adília Lopes produz pequenezas, Kitsch e «reportagem». A poesia que era uma especialização do literário, sobretudo via formalização e excepção estilística, desespecializou-se bastante. A economia do campo poético restrito (?) não parece exactamente às avessas da economia material e, por isso, descontínua com a do campo literário alargado. O campo poético seria neste caso pós-moderno e, uma vez que agora não respeita o funcionamento simbólico que o estruturou «enquanto tal», pós-modernista. A poesia representa já a Cultura e paga-se em colóquios, embaixadas, fundações, e Obras Completas. O campo poético acha-se envolvido por uma benévola economia de troca de serviços (prémios, lugares de crítico e recensista nos jornais, subsídios, bolsas à criação, tradução e encontros de tradução, encontros e comboios de poetas). Não parece poder reivindicar exactamente um corporativismo do universal. (cf. Bourdieu, 1996, 1998)

Bibliografia
Bourdieu, Pierre(1996) As Regras da Arte. Génese e Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Editorial Presença.(1998) Contra Fogos, Oeiras, Celta.

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1 comentário:

Anónimo disse...

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