terça-feira, novembro 06, 2007

HOMENAGEM A EUGÉNIO DE ANDRADE, MORTO.

Andityas Soares de Moura


Não conheci Eugénio de Andrade pessoalmente. A seu respeito só sei aquilo que toda a gente sabe, além de algumas fábulas e lendas adicionais que me foram confiadas pelo poeta Xosé Lois García, esse sim, amigo íntimo do falecido. Não conheci Eugénio e não gostaria de tê-lo conhecido. Sua cínica vaidade, associada a uma presunçosa ironia, o tornavam, para mim, uma pessoa, no mínimo, de convivência difícil. Não me sentiria à vontade em sua presença.

Mas isso, evidentemente, não é um problema. Na verdade, não gostaria de conhecer quase nenhum dos poetas que admiro. Quem conseguiria conversar com Dante qualquer coisa que não fosse, pelo menos, solene? E Rimbaud, será que alguém se habilitaria a dividir o quarto com o moço, sabendo que, entre outros hábitos, ele cultivava piolhos na própria cabeça? É possível imaginar mesa de bar mais tediosa do que uma à qual se sentassem Eliot, Pound e Rilke? Não conseguiria falar sobre assuntos triviais e humanos com Lorca, meu grande e querido Lorca, que só é assim porque o tenho, irreal, no coração.

Definitivamente, é preciso deixar os poetas em paz, cada qual com suas esquisitices, e, atividade que se torna cada vez mais rara no dias de hoje, ler as suas obras. A de Eugénio de Andrade vale a pena. Esse homem que agora morreu deixou-nos algumas das páginas mais límpidas da poesia portuguesa contemporânea. A leveza de seu estilo, a pureza de timbre e a arquitetura algo apolínea de seus versos são suficientes para diferenciá-lo e localizá-lo muito acima da maioria dos poetas portugueses vivos – e boa parte dos mortos, com exceção de um Pessoa ou de um Sá Carneiro. Quando nos aproximamos de seus poemas, somos invadidos por qualquer coisa de inefável e intraduzível. Suas palavras parecem escolhidas ao acaso. Todavia, compõem um todo harmônico habilmente projetado do qual quase não notamos as molas mestras, tão naturais que são: rigor e simplicidade.

Poeta do corpo e de suas paixões, Eugénio sabia manejar o verbo poético, conferindo-lhe uma realidade erótica crepuscular. Contudo, jamais permitia que sua dicção soasse banal ou, o que é pior, vulgar. Compreendia muito bem, com Wilde, que, assim como todo crime é vulgar, toda vulgaridade é criminosa. A nitidez de suas tintas líricas lembram os clássicos e ele, ao seu modo muito peculiar, foi um deles: árcade desgarrado no tempo e no espaço.

O amor na poesia de Eugénio nunca é alegre ou epifânico. O silêncio de gestos repetidos, de ternuras agônicas escorrem por suas páginas, molhadas do mais frio orvalho dos tempos: “Nada podeis contra o amor,/ Contra a cor da folhagem,/ contra a carícia da espuma,/ contra a luz, nada podeis./ Podeis dar-nos a morte,/ a mais vil, isso podeis/ – e é tão pouco!” (in Frente a frente). A ciência do amor, essa impura sabedoria, que só se aprende tarde, no limite – Drummond dixit –, foi, sem dúvida, o tema central da obra do poeta português, e isso contra todas as modas pós-modernas que insistem em não falar de coisas “ultrapassadas” como o amar. Mas não nos enganemos: o amor em Eugénio não é esfera de despreocupação ou de gratuidade lírica. Na poesia amorosa (erótica? pornográfica, algumas vezes?) de Eugênio não há trivialidades. Nela, se há inocência ou alegria, tal se dá apenas como gozo momentâneo ou explosão erótica. Na maioria das vezes, o amor é triste. Não há derramamentos pueris e ingênuos. Eugênio, como Mallarmé, leu todos os livros da carne: “Já gastámos as palavras./ Quando agora digo: meu amor,/ já não se passa absolutamente nada./ E no entanto, antes das palavras gastas,/ tenho a certeza/ de que todas as coisas estremeciam/ só de murmurar o teu nome/ no silêncio do meu coração” ( in Adeus).

As imagens de seus versos evocam uma espécie de paraíso perdido neopagão no qual a carnalidade do desejo se expõe sem mágoas, preconceitos ou ilusões. Nesse sentido, resgata, talvez sem querer, um lirismo autóctone muito português, entranhado, simples e claro. É com “As mãos e os frutos” (1948) que notamos a diferença e a força do seu radical erotismo, que não se compromete com correntes literárias, mas apenas com seus próprios impulsos e visões. Erotismo do corpo, mas também da palavra que o assediava. Somente a mais cortejada das camponesas portuguesas, a poesia, era capaz de fazer Eugénio sorrir de leve, como quem relembra uma antiga paixão juvenil: “Surdo, subterrâneo rio de palavras/ me corre lento pelo corpo todo;/ amor sem margens onde a lua rompe/ e nimba de luar o próprio lodo” (in Surdo, subterrâneo rio).

Dono de uma voz peculiar e fluida, José Fontinhas – era esse o verdadeiro nome do escritor, nascido aos 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia e morto no Porto, aos 82 anos de idade – misturava aos seus versos uma sonoridade lúdica – verdadeiramente lusa –, muitas vezes comparada a dos trovadores medievais. O recitativo de Eugénio nos lembra o andamento ambíguo, carregado e sensual do fado.

Falando em fados e ritmos, um das características mais notáveis da poesia de Eugénio de Andrade é a sua recusa consciente de cantar a alma portuguesa, de ser “natural” e acessível às classificações da crítica. Eugénio de Andrade canta como quem não canta. Os modelos canônicos do “poeta da terra”, do “poeta essencial” à moda de Caeiro, personae que tanto infestam a nova poesia portuguesa, não eram importantes para alguém que, como Eugénio, sabia que “as palavras estão gastas” (in Adeus). Por mais de uma vez o poeta se referiu com desdém aos chamados “temas tradicionais portugueses”. Dessa sua honestidade surgiram poemas belíssimos, naturais e gostosamente irônicos: “O meu país sabe as amoras bravas/ no verão./ Ninguém ignora que não é grande,/ nem inteligente, nem elegante o meu país,/ mas tem esta voz doce/ de quem acorda cedo para cantar nas silvas” (in As amoras).

Iniciei estas linhas dizendo que não gostaria de ter conhecido Eugénio de Andrade. E nisso não vai nenhuma repugnância. Sei que em seus últimos anos Eugénio queria ficar livre dos leitores e de todo o resto: das fofocas, dos boatos, das homenagens vazias etc. Talvez por isso tenha preferido se exilar no Porto, cidade céu escuro e tenso, de cinzas igrejas, onde até o rio parece ser de pedra. Ele chegou aquela espécie de estágio letárgico que o impedia de conviver com os seres humanos rasteiros. Isso porque, antes mesmo de morrer, já havia cumprido o seu destino. Virou vate: alma da poesia. Mesmo sem conhecê-lo, ó Eugénio, despeço-me com carinho. Que a eternidade te seja breve, como nos versos finais de teu poema: “Cai o silêncio nos ombros e a luz/ impura, até doer./ É urgente o amor, é urgente/ permanecer” (in É urgente o amor).


Belo Horizonte (Brasil), 20 de junho de 2005.

4 comentários:

APC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
APC disse...

Li de fio a pavio. Belíssimo texto!!!

Lucélia Bento disse...

OMG LOL I love Eugenio de Andrade so much LOOOOL.
ta bem ja nao quero comentar, eu tamem na queria eu so me assente aqui pa fdazer um rrabalho sobre este grnda homeme que sou euu, ognio dji andradji.

muninasliterárias disse...

obrigado por nos propocionar informação sobre o sr eugenio de andrade, um poeta morto, de forma a não termos que pensar pelas nossas próprias cabeças. (este comentário foi copiado de outro artigo mais interessante mas também menos devertido)
cumprimentos à esposa ou esposo e uma vida cheia de salute!